segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Nos embalos de um texto inteligente (Leda Rita Cintra)

Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer — Ed. Merca¬do Aberto, 176p. Cz$ 55,00. Da série Novo Romance. Jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, p. 07, 20 de junho de 1987.

Animado por uma narrativa intercalada, Valsa para Bruno Stein chega ao baile das letras

Para seu primeiro romance, Valsa para Bruno Stein (Editora Mercado Aberto. 175 páginas. CzS 235,00), Charles Kiefer trouxe o poder encantatório da linguagem poética que impregnava sua novela de estréia, Caminhando na Chuva, de 1982. De sua segunda novela, O Pêndulo do Relógio, 1984, ambas publicadas pela mesma Mercado Aberto, trouxe a força narrativa que arrasta o leitor até a última página.

Pau d'Arco, a pequena cidadezinha, quase aldeia, criada por ele para abrigar seus personagens, também não poderia faltar. E aí está. Repressiva, mesquinha, assistindo impassível aos dramas e conflitos dos personagens. Intocada, assiste à passagem esmagadora do progresso, que avança grosseiramente arrasando, com suas máquinas e seu capitalismo monocultor e selvagem as tradições culturais e econômicas que os descendentes dos imigrantes alemães criaram a seu redor.

E vê o ruir do império de Bruno Stein (personagem principal da obra), sobre sua família. Vê a partida de Verônica, sua nela mais velha, em busca de outros horizontes que não os de sua avó Olga e os de sua mãe Valéria, "resignadas ao silêncio e a solidão". Vê, sobretudo, o velho, relegado, sozinho, igual a cachorro doente, se refugiar em um velho galpão de sua olaria para, então sim, moldar à sua maneira, no barro, os personagens de sua família que na realidade escapam de seu controle. É no barro, em suas esculturas que os aprisiona. Mas, ainda uma vez impotente, não pode transmitir-lhes o sopro de vida, exclusividade do Criador.

Resta a Bruno o consolo de uma religião dominada por um Deus "cruel e vingativo” que ensina, antes de tudo, o pecado. E pecado é ir a bailes, ao carnaval, assistir à televisão, "essa máquina da depravação".

Esmagado entre essa religião repressiva e um progresso para ele desastroso, esgotadas suas negações e possibilidades, o personagem entrega-se ao pecado maior, ao prazer maior – a paixão que sente pela nora. No entanto, essa entrega é apenas o reflexo de seu desmoronar. É o personagem inteiro que se fraciona, se divide e, finalmente, se entrega. Não, como seria de esperar, como um perdedor, mas um vencedor que diante da luz azulada da televisão conclui que "acabara de acrescentar mais um prazer à sua já tão atribulada existência". E que, a partir daí, novamente se reincorporara, inteiro.

Prazer que Charles Kiefer modela através de uma narrativa intercalada. Cada personagem, num movimento pendular do foco narrativo, é acompanhado pela duração de seu dia, ao fim do qual é abandonado exposto, exausto, para que o movimento possa ser reiniciado, com o foco incidindo sobre outro personagem, que, por sua vez, será esmiuçado. O resultado desse procedimento estilístico é que cada fato ou personagem será visto relatado por diferentes visões. O que só faz acrescentar ao texto desse excelente autor gaúcho, elegante, conciso e econômico, mais um prazer. Que nem a péssima qualidade gráfica, que o texto e o autor não merecem, consegue empanar.

Rodopios e pausas da paixão

(Resenha de Geraldo Galvão Ferraz)

Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer — Ed. Mercado Aberto, 176p. Cz$ 55,00. Da série Novo Romance. Revista Leia, julho de 1986, São Paulo, SP.

Demorou, mas afinal Charles Kiefer se animou a passar das pequenas novelas para o romance, uma decisão que O Pêndulo do Relógio (1984) já implorava dele, trazendo linhas narrativas que sufocavam nos estreitos limites das magras páginas da excelente obra do escritor gaúcho.

Em Valsa para Bruno Stein, Kiefer confirma tudo que prometiam textos anteriores como Caminhando na Chuva (1982) e O Pêndulo. No formato maior, ele se mostra igualmente seguro no domínio da ação e do diálogo, hábil na fixação do instante significativo ou do detalhe essencial, além de dono de um talento inegável para contar gostosamente uma história.

História que no caso é a de Bruno Stein, septuagenário dono de uma olaria na região noroeste do Rio Grande do Sul, onde a monocultura da soja e as rápidas mudanças sociais dela resultantes são um tema em que o autor deita e rola. Charles Kiefer chegou, inclusive, a criar ali uma cidade — Pau d'Arco — para ser o palco iluminado onde desfilam seus personagens. Mas voltando a Bruno, sua trajetória é a linha mestra do romance, da caracterização dos seus prazeres na vida (o fumo, a leitura do "Fausto" goethiano e da Bíblia, a música e a paixão de modelar o barro) até o encontro final de um aparentemente inesperado prazer, o sexo crepuscular e incestuoso com a nora Valéria, clímax de uma atração desesperada e inescapável tipo paixão de tragédia clássica.

No pequeno mundo da olaria de Bruno, paixões não faltam. Nem conflitos, como o do chefe da casa, dividido entre a rigidez luterana e a tentação do pecado, cujo emissário mais evidente, para ele, é a televisão, símbolo do novo e do diabólico (praticamente a mesma coisa para o universo congelado no tempo de Bruno). As mulheres da casa vivem hipnotizadas pela medusa eletrônica e as vidas fictícias das novelas; a nora mal casada sonha com um amor que a redima da mediocridade a que é condenada pelo marido.

Verônica, neta de Bruno, opta por largar o namorado (que lhe prometia sorte igual) e rompe as fronteiras da olaria, indo estudar em Porto Alegre. Presos ali pela necessidade, os empregados da olaria, Gabriel, Mário e Erandi são coadjuvantes do fundamental que é a luta que se trava dentro do Bruno Stein, ante a possibilidade dele moldar seu destino de modo diverso ao estabelecido, numa chance que a idade já não lhe permitia esperar.

Charles Kiefer, sádico criador, imiscui outras vidas, outros problemas, outras sortes, retardando e esmiuçando nuanças da guerra pela alma de Bruno Stein, ao balanço dos rodopios e pausas da paixão em ritmo de valsa da sua narrativa. O leitor, parceiro arrebatado, só tem que se deixar levar (tropeçando, contudo, nos muitos erros de português do romance que parece — e não merece — ter sido editado sem revisão), esperando agora que Charles Kiefer persista na sua decisão de optar pelo gênero literário que lhe dá maiores condições de voar ato.

domingo, 27 de setembro de 2009

"Esta Fortuna Crítica reúne entrevistas, reportagens, estudos, ensaios, resenhas e críticas sobre a obra de Charles Kiefer."