sábado, 4 de fevereiro de 2012

Caminhando na chuva (Romar Rudolfo Beling)

* Caminhando na chuva, de Charles Kiefer. São Paulo: Editora Leya, 2012, 148 p.

É digno de toda consideração que essa pequena novela (pequena na extensão, fique absolutamente claro) chamada Caminhando na chuva assinale a estreia do gaúcho Charles Kiefer no mercado editorial. O feito ocorreu em 1982, e portanto essa obra fecha 30 anos – teremos aí uma obra balzaquiana! – em 2012.

Quem uma vez lê Caminhando na chuva – e é tarefa para algumas horas, porque o ritmo do texto prende, o enredo em si é convidativo demais, e o narrador nos cativa desde as primeiras palavras – jamais esquecerá essa singela narrativa. Por aí se veria, com a simplicidade e com a mão certeira de um escritor talhado para grandes voos, onde Kiefer (abaixo) pararia. Com alguns bons prêmios nas mãos, pra começo de conversa, visto que já detém nada menos que três Jabutis.

Trata-se, essa novela, de um típico relato de formação, mas concentrado num momento específico de uma vida. E lida com um momento crucial, tanto quando se considera a condição humana em si, como um todo (a história aborda a adolescência; lida com a constatação, com seus desconfortos e com seus deslumbres, da chegada à vida adulta) quanto quando se reserva um olhar retroativo, de pessoa madura, sobre os pequenos segredos individuais que tornam cada um quem veio a ser.

O narrador recupera, de imediato, as suas origens humildes, os esforços que precisou fazer para superar adversidades e lógicas e, em uma cidadezinha pequena, dar seguimento aos estudos. A grande maioria, como sempre acontece, na corrida natural ao longo da vida, para no meio do caminho: uns vão cuidar de sonhos pontuais, outros se enganam com as miragens no imenso deserto cotidiano, outros se arremessam no primeiro namoro e por aí fincam pé; outros não se sentem habilitados ao pendor dos estudos ou das ideias, outros ainda não tiveram ou (esses também em grande número) não souberam aproveitar, desperdiçaram sem direito a desculpa as chances que a vida brindava para verem de mais alto, para olharem mais longe, para olharem com mais nitidez.

O narrador de Caminhando na chuva nos fala de sua infância, de sua história, de suas dúvidas, se confronta com os sentimentos que começam a doer mais (o amor, alguma saudade, alguma frustração, alguma vergonha, alguma incerteza), vê o futuro se avizinhar. Está no segundo grau, sabe que precisa começar a por mãos à obra e fazer a vida render, e, entre o amor e entre tentar a sorte em seguir aos estudos, terá que tomar a decisão.

E ele, todas as grandes decisões toma de um jeito. Sai a caminhar nos dias em que a grande maioria justamente se ausenta das ruas: quando chuvisca, quando a neblina cobre a paisagem e toma tudo com um manto, um véu, de carícia, de promessa. Mas quando a paisagem externa está menos transparente, parece que é quando ele enxerga melhor, com mais transparência, dentro de si. Quando enfim pode estar sozinho (isso não lhes lembra a condição do leitor?), quando pode prestar atenção em seus próprios passos, quando a rua realmente se abre para ver onde está a passagem mais confiável, mesmo sob a chuva, é ali que ele formata seu caminho, aquele que o levará mais longe, mais para perto de si mesmo. Seja de dia ou seja à noite, caminhando, caminhando, caminhando, caminhando e pensando, ele enfim se encontra. E de repente a gente se encontra também.
Graças ao Charles Kiefer.
Para ler dezenas de vezes. Dezenas.

domingo, 5 de dezembro de 2010

UM GRANDE ESCRITOR (Vicentônio Regis do Nascimento Silva)

Para ser escritor – Editora Leya, 160 p. Jornal Oeste Notícias, Caderno Tem!, 03 dez. 2010. Presidente Prudente, SP.


Legalidade e legitimidade são dois substantivos caros. Legalidade relaciona-se estritamente a quem possui títulos, certificados, diplomas ou documentos que atestam possível capacidade. Legitimidade remete à habilidade profissional de desempenhar satisfatoriamente uma atividade. Quem tem formação legalmente regulamentada nem sempre desempenha satisfatoriamente uma atividade faltando-lhe, dessa maneira, legitimidade. Da mesma forma, nem todos os que se aventuram em uma atividade têm autorização legal, burocrática ou estatal. Charles Kiefer – ao lado de grandes nomes contemporâneos como Luiz Antônio de Assis Brasil, Deonísio da Silva, Cristóvão Tezza ou Milton Hatoum – reúne legalidade e legitimidade: não apenas analisa, estuda ou critica, mas principalmente produz Literatura.

Autor de dezenas de obras – entre elas romances, contos, crônicas e ensaios – e reconhecido tanto pelos leitores (com expressiva vendagem) quanto pela crítica (considerando o número de prêmios e os estudos universitários sobre sua obra), Kiefer utiliza sua experiência de orientador de oficinas literárias no Rio Grande do Sul em “Para ser um escritor” que, em boa parte, constitui, para quem acompanha regularmente seu blog (www.charleskiefer.blogspot.com), seleção de textos relacionada ao ofício da escrita.

Outros escritores renomados já tinham registrado suas impressões pedagógicas ou pessoais sobre a construção ficcional. Entre os brasileiros, Raimundo Carrero, Nelson de Oliveira e o grande Autran Dourado e, no exterior, Stephen Koch, Marguerite Duras, Schopenhauer, Marquês de Sade, Milan Kundera, David Lodge, Ernesto Sábato e Roland Barthes. Kiefer exterioriza suas concepções, levando o leitor a tomar iniciativas no papel social que evidencia o intelectual diante dos empecilhos e das confusões do cotidiano. O escritor tem a palavra para se manifestar, marcar sua posição e se preparar ao combate. Dessa maneira, o anonimato não caberia aos intelectuais no debate das idéias. Covardia? A Literatura não merece covardes, garante Kiefer em “Eu assino o que escrevo” (p. 112).

O livro não agrupa somente concepções de coragem, mas incentiva o estudo sistemático – não necessariamente metódico – e a valorização dos antecessores. Estudar profundamente é, portanto, compromisso indispensável: “A arte não evolui. Por isso, conhecer profundamente a tradição literária é absolutamente necessário a qualquer escritor, sob pena de se passar pelo ridículo de se reinventar a roda”. (p.46)

O estudo de autores, de obras, de análises que agreguem valores aos diálogos intertextuais e enriqueçam o contexto são passos essenciais para assimilar com maturidade as diretrizes dispostas, como se espera de um livro cujo título insinua o caminho “Para ser escritor”, em vários capítulos. Umas das primeiras dicas alerta sobre a má qualidade de obras, destacando problemas com personagens mal construídas ou estereotipadas, ação lenta e desconexa, diálogos superficiais e inúteis, situações inverossímeis, descrições desnecessárias ou que não interessam à narração, textos inexpressivos ou ausência de sutileza. A cada um dos tópicos, Kiefer discorre sobre pontos essenciais que, na prática, auxiliam o bom leitor a analisar com mais capacidade o que descodifica e garante ao aspirante de escritor um roteiro bem estruturado na concepção de suas criações (p. 34-37).

A busca da perfeição também se manifesta no levíssimo “Quatro mundos da criação” em que se estabelece a gradação pragmática e didática no ensaio, na tentativa, no esboço arquitetônico da obra de arte. O discernimento e a conceituação de gêneros narrativos são expostos, discutidos e singularizados como no caso de “É conto ou crônica?” em que, nas primeiras linhas, discorda do poeta Mário de Andrade para quem a definição de conto ou crônica se daria pela escolha em enquadrá-la – sem mais questões estéticas – em um ou outro gênero.

“Para ser escritor” é, no mínimo, um manual indispensável para os que desejam se tornar autores, narradores, ensaístas, dramaturgos, poetas: didático, pragmático e fluido sem, no entanto perder sua capacidade de teorização e de espanto aristotélico.

sábado, 27 de novembro de 2010

Entrevista a Editora Record, 2003

Entrevista - Quem faz gemer a terra & Logo tu repousarás também


Bah, mas como tu não conheces Charles Kiefer?! É fácil imaginar o espanto de um gaúcho diante de alguém que não saiba quem é o escritor gaúcho. Mas a verdade é que, consagrado no Sul, onde já vendeu mais de 300 mil livros, e vencedor de três prêmios Jabuti, Kiefer ainda permanece um desconhecido para o Brasil acima do Trópico de Capricórnio. Agora, 28 anos depois de sua estréia literária, esse admirador de Machado de Assis e Jorge Luís Borges vive a expectativa de ser o próximo nome das letras gaúchas a virar uma preferência nacional. O seu novo livro de contos, Logo tu repousarás também, e a reedição de Quem faz gemer a terra, romance de 1991, são os primeiros que chegam às livrarias sob o selo da Record, através da qual ele espera ver sua obra cruzar o país.

Há cerca de dois anos e meio, numa entrevista dada em Paris, você se queixava de que, apesar de já então ter vendido cerca de 300 mil exemplares de seus livros e de ter conquistado três prêmios Jabuti, o seu nome ainda não era conhecido no Rio e em São Paulo. Desde então alguma coisa mudou?

Não, mas eu espero que a partir de agora, com a minha entrada para a Editora Record, esta situação mude. Nos anos 1980, quando a editora em que eu publicava aqui no Sul tinha distribuição no eixo Rio-São Paulo, eu vendia bem e era razoavelmente conhecido. Cheguei a publicar pelo Círculo do Livro, em edição para associados, o romance Valsa para Bruno Stein. Livro sem boa distribuição é livro morto, você sabe. O que me entusiasma no trabalho da Record é o profissionalismo, a dinâmica, a competência. Eu farei a minha parte, escrevendo novas obras, viajando, palestrando, pois sei o quanto esse produto chamado livro, em países periféricos como o nosso, tem dificuldades de venda. Acabei de lançar, com meus alunos de oficina, uma “Corrente de Solidariedade ao Livro”. Propus que eles sempre dêem livros de presente. É útil, refinado e saudável.

Na mesma entrevista, tanto você como o seu conterrâneo Vitor Ramil defenderam, referindo-se à nova literatura gaúcha, a existência de "uma estética do frio", "uma visão mais esbranquiçada da realidade". Quais seriam as características dessa estética, como ela se reflete na sua obra?

Estatisticamente, o Sul é uma das regiões brasileiroa com os melhores perfis de consumo per capita de livros. Mas eu não credito esse bom consumo de livros ao frio, e sim a outros fatores. À ação do Estado (desde 1835-45, período da República do Piratini), através do Instituto Estadual do Livro; ao meltin pot de culturas, especialmente alemã, italiana, judaica, árabe, russa, polonesa, sabidamente povos amantes do livro; ao melhor equilíbrio (mas ainda muito deficiente) entre as classes sociais; aos investimentos em educação (também desde a Revolução Farroupilha). O frio, por si só, seria incapaz de nos tornar leitores. Acredito em políticas públicas de educação e cultura. Os bens simbólicos são tão importantes quanto os bens materiais.

No conto Nero, no meio da história sobre rinhas de galos, aparece esta definição: "Contar uma boa história é como preparar um galo. Embora estejam todos ao redor do curro por causa do desfecho, as marchas e contramarchas é que fazem a briga interessante. Uma história também tem unhas e esporões". O modo como você "preparou o galo" em Logo tu repousarás também apresenta novidades em relação a seus livros anteriores?

Sim e não. Acredito, como Jorge Luís Borges, que todo escritor circula sempre ao redor dos mesmos temas, pois são eles que nos procuram, os temas são parte de nossas obsessões inconscientes. Como um tratador de galos, limpei com paciência as minhas gaiolas, lixei as unhas dos meus contos, dei-lhes boas injeções de vitaminas políticas, sociais e espirituais. Sou econômico quando escrevo. Concentrado, até. O leitor, ao ler, dissolverá as minhas essências, amplificará as relações entre os nós e os desenlaces.

A morte ronda várias histórias de Logo tu repousarás também (em contos como Boneco de neve, Morte súbita, Nero, Lídia e o rabino, etc.). O projeto era desde o início escrever um livro dominado pelo tema?

A morte é um tema recorrente em todas as tradições literárias. É a nossa maior angústia. Não haveria como não ser a nossa maior obsessão. Escrever é tentar enganar a morte. A estabilidade do texto e a solidez da página nos dão uma certa ilusão de eternidade.

Outra afinidade partilhada entre vários contos deste volume são protagonistas maduros, velhos, solitários ou em momento de balanço. A passagem do tempo é algo que lhe incomoda hoje, aos 47 anos de idade?

É engraçado, mas o envelhecimento não me chateia. Vivi muito, e bem. E, há pouco mais de três anos, nasceu minha segunda filha, a Sofia. E ela me devolveu a juventude, o ânimo, a esperança. Duas décadas e meia atrás, quem me encheu de alegria foi a Maíra, a primeira filha. O importante é viver cada momento em sua plenitude. Em paz, cercado de livros e música. E agora, com esse renascimento literário, estou me preparando para viver mais 100 anos.

Em 1971, outro gaúcho, Érico Verissimo, "fundou" uma cidade na geografia imaginária de todo leitor brasileiro: Antares. Como ele, você criou e está tornando cada vez mais conhecida Pau D'Arco, cidadezinha-cenário de várias de suas histórias. No novo livro, ela reaparece. Afinal, como é Pau D'Arco? Ao longo de suas duas décadas (?) de existência, como ela foi crescendo e se modificando?

Minha Pau-d’Arco foi inspirada em Yoknapatawpha, de Faulkner. Fui leitor compulsivo de William Faulkner na juventude. Como o mestre norte-americano, eu quis uma cidade que fosse só minha. Pau-d’Arco se desenvolve no mesmo ritmo das cidades da hinterlândia brasileira e sofre os mesmos problemas: êxodo rural, desnível social, violência, perda de identidade. Pau-d´Arco é a minha Pasárgada. Cheguei a criar uma cidade ao lado de Pau-d’Arco, que chamei de San Martin, para que Pau-d´Arco não fosse alagada por uma barragem, no romance A face do abismo. Eu me escondo em Pau-d´Arco. E me encontro em Pau-d´Arco. Mas, aos poucos, ela está desaparecendo da minha obra. Meus personagens partiram da cidade e se espalharam pelo mundo. E eu vou atrás deles...

Ao mesmo tempo em que chega ao mercado seu novo livro, Logo tu repousarás também, a Record manda também para as livrarias uma nova edição de Quem faz gemer a terra, romance que você lançou em 1991. Você se inspirou no episódio real — a morte de um soldado com um golpe de foice dado por um sem-terra, durante um protesto. Há alguns anos, você afirmou que foi naquele momento "que a imprensa transformou o movimento dos sem-terra num movimento de bandidos". Nos últimos 15 anos, o Movimento dos Sem- Terra foi ganhando cada vez mais expressão e força. Visto hoje, Quem faz gemer a terra envelheceu? Você defende uma literatura militante?

Sim, a Record relança agora a sétima edição do Quem faz gemer a terra. Não, o livro não envelheceu. Ao contrário, tornou-se mais atual ainda. Não creio que o livro seja de “literatura militante”, ele é “de literatura”. Os temas sociais sempre estiveram entre as prioridades dos escritores. Pensemos em Tolstói, Dostoievski, Camus, Sartre, Steinbeck; que meu romance seja enquadrado em “literatura de cunho social”. É exatamente isto o que ele é. Ele não propõe salvação nenhuma, apenas descreve a vida dura dos colonos sem-terra. Militante sou eu, que me posiciono, que dou entrevistas, que faço palestras. Gosto dessa ambivalência do livro. Os radicais de esquerda me condenam por ser um livro de direita. Os radicais de direita me condenam por ser um livro de esquerda. Sinal de que o livro incomoda.

Quem faz gemer a terra é um título pouco conhecido fora do Sul — onde inspirou até peça elogiada. Como surgiu a idéia de reeditá-lo? A proposta foi sua?

A peça baseada no livro foi apresentada mais de 70 vezes, inclusive na França e na Polônia. A reedição do livro faz parte do pacote que a Record preparou para 2006: serão 4 livros. Esses dois, e mais dois romances, para setembro: Valsa para Bruno Stein e O escorpião da sexta-feira. Meu projeto é reeditar toda a minha obra pela Record, são uns 30 títulos. Em 2007, vem mais. E assim a cada ano.

No fim dos anos 1990, você abraçou a política formal, assumindo o cargo de coordenador do Livro e Literatura, depois foi Secretário de Cultura de Porto Alegre e Subsecretário de Cultura do estado do Rio Grande do Sul. No novo livro, é muito forte, em alguns contos, a desilusão de personagens com a práxis política, inclusive a da esquerda. Como o momento atual do país está se refletindo na sua prosa?

A política formal, para mim, acabou. Dei a minha contribuição, dei seis anos de minha vida à cidade, ao estado, ajudando a gerir políticas públicas de cultura. Quando nasceu a Sofia, depois de fitar seus imensos olhos azuis, decidi que me dedicaria somente a ela. A atividade política é tão absorvente que me impediria de cuidar da infância da menina. Foi uma opção radical, como tudo o que faço na vida. Não gosto do muro. Ou estou de um lado, ou do outro. Saí no meio do governo Olívio Dutra, antes da chegada de Lula ao poder. O atual momento não me espanta. Quem leu os gregos e os grandes clássicos da filosofia e da literatura não poderia imaginar que os seres humanos pudessem transformar-se em anjos incorruptíveis. Os culpados devem ser punidos, depois de provada a sua culpa. Acho saudável o que está acontecendo. Agora, a população compreenderá que é a vigilância constante e democrática que nos vacinará contra o messianismo e a idolatria. Continuarei defendendo os pobres, os aflitos e os humilhados de minha terra natal, onde cantam as jandaias nas frondes da carnaúba, mas onde os salários são miseráveis, a educação não é para todos, a cultura é luxo burguês e livro é objeto esquivo e raro.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Gaúchos (Wilson Martins)

Kiefer, Charles; Faraco Sergio; Laub Michel. Jornal O Globo, 2 de abril de 1999, Rio de Janeiro.

A gauchesca é uma literatura saudosista, escrita por intelectuais da cidade, quando há longo tempo desaparecera a sociedade que a inspirava. Autores, narradores e personagens referem-se a um passado mítico e mitificado, em contraste com o presente desmitificante. Em 1942, Viana Moog identificava nesse regionalismo uma vertente orgânica das letras riograndenses, a outra sendo o universalismo, que a complementa e contesta.

Acompanhando o desenvolvimento da sociedade, a literatura tornou-se urbana nos temas, personagens e intrigas relacionadas com a cidade e, quase sempre, com as grandes cidades, nomeadamente Porto Alegre, nem por isso menos saudosista em outras perspectivas: a criança desaparecida, o "verde paraíso dos amores infantis" e também dos amores mortos. É a marca dos contos de Michel Laub ("Não depois do que aconteceu". Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1998), de Charles Kiefer ("Antologia pessoal". Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998) e de Sérgio Faraco ("Contos completos". Porto Alegre: L&PM, 1995), este último vitimado pela desatenção da crítica metropolitana, sendo, embora, uma coletânea de grande qualidade literária e, para o que no momento nos interessa, um excelente "documentário" das duas tendências. Um dos seus contos ("Sesmarias do urutau mugidor") é um painel quase didático dessas transformações. Imobilizado na estrada por uma falha mecânica do automóvel (máquina de muitos "cavalos" vencida onde o cavalo dos pampas jamais falhou), o protagonista pede acolhida no rancho de um velho
gaúcho, "ruína viva" que evoca antes o mundo de Alcides Maya que o de Simões Lopes Neto. É significativo que o autor organize o volume em três partes, indo de gauchesca tradicional às narrativas contemporâneas, nomeadamente as "histórias de Porto Alegre", tema predileto dos escritores gaúchos.

Charles Kiefer acrescenta ao realismo urbano realidades imaginárias de diversos contos, como o primeiro deles ("Photoplasma"), em que até a ortografia é fantasiosa. Ele e Laub são contistas "literários", quero dizer, com a viva consciência da sua condição de escritores, de homens escrevendo livros, não observadores de hipotéticas circunstâncias da vida real. Se o poeta famoso declarava ser "homem para quem o mundo exterior existia", eles são ficcionistas para quem o que existe de fato é a literatura. Nessa linha, escreveram contos semelhantes a partir de uma situação "profissional": o ficcionista em busca de assunto.

No de Charles Kiefer, intitulado "Teoria do conto ou Um escritor, um cavalo magro e velho", uma cena de rua fornece a inspiração de que necessitava: "Depois, assim que se instalou à boléia, Antônio apanhou o
aparelho e bateu nas ancas do animal até ficar extenuado, até que o filho apanhasse as rédeas e o chicote e conduzisse a carroça para longe dos meus olhos, que vislumbraram na cena final o motivo de um conto, diferente do primeiro, talvez um que principiasse assim: Há várias semanas dispunha-me a escrever um conto sobre um homem e um cavalo magro e velho...". É com essas palavras que o conto efetivamente se inicia.

Tudo bem considerado, a teoria do conto (de todos os contos) é a sua prática, situação que se duplica quase literalmente no "Conto do inverno", de Sérgio Faraco, tanto no esquema narrativo quanto na conclusão artesanal: "Boa história", diz o narrador a propósito do que acaba de contar. "Meu winter's tale, disse em voz alta. E logo um pensamento desagradável: talvez tivesse desconfiado, desde o início, de que aquilo era um conto. Nesse caso, era quase certo que estivera a representar. Era espantoso como os escritores, às vezes, podiam ser interesseiros, e no fundo, bem no fundo, tão ou mais cruéis do que um dono de caminhão como o que conhecera naquela madrugada".

Nessa galeria, Michel Laub é o "escritor de gabinete", autor, como os anteriores, de contos breves, simples vinhetas, as proverbiais "fatias de vida" que estavam em moda ao tempo de K. Mansfield (Álvaro Lins
identificou uma "família Mansfied" em nossa literatura). Os tempos são outros, contudo, e onde ela se demorava nos devaneios de adolescente e no sentimentalismo nostálgico, os dias de hoje propõem a temática brutal do homossexualismo sórdido ("Na rua escura", de Sérgio Faraco), ou do ecologismo tanto mais politicamente correto quanto convencional ("A última canafístula", de Charles Kiefer).

Um e outro podem ser considerados realistas, pelo menos em uma parte importante de suas obras, enquanto Michel Laub é contista de subentendidos sutis e elipses refinadas: a protagonista de "Cheiro de cloro"
especializou-se na hidroterapia para atender ao próprio pai, paraplégico em conseqüência de acidente na piscina a que ela, como criança, assistira traumatizada. O que só se esclarece na última linha. É autor mais sugestivo que narrativo ou descritivo. O conto "Morando longe", entre outos, modelo de minimalismo que lhe define e caracteriza o estilo, encontra o desfecho dramático numa única linha: "Entramos. Nádia está esperando, e pára de sorrir quando me vê" - tema retomado por Charles Kiefer no plano realista de "O visitante", autor, aliás, do manual do perfeito contista ("O elo perdido").

Tão realista ou regionalista quanto seja, Sérgio Faraco não rejeita o realismo fantástico ("Um destino para o fundador") ou flagrante da solidão urbana, não o tempo em si mesmo, mas o envelhecimento, o que é diferente, ("A dama do Bar Nevada"). É, em perspectivas invertidas, a história do amor perdido (no singular), isto é, do momento fugaz em que se desfez a oportunidade única do grande amor ("Café Paris"). Ou então, a história pungente de Cíntia (Charles Kiefer), cuja morte foi pronunciada pelo pequeno defeito técnico na gravação da música que cantava: "O leve tremor, que eu percebera no gabinete, havia se transformado numa vibração constante de largo espectro, tão homogênea e tão intensa que nenhuma
filmadora ou máquina fotográfica conseguia fixar-lhe a imagem".

Charles Kiefer, best-seller no Sul, tem obra relançada nacionalmente (Marcelo Moutinho)

Logo tu repousarás também, de Charles Kiefer, Editora Record, 112 p. Quem faz gemer a terra, de Charles Kiefer, Editora Record, 160 p.

O gaúcho Charles Kiefer é exemplo clássico de um fenômeno literário típico dos pampas. Autor de 27 livros, que chegaram a respeitáveis 300 mil exemplares vendidos, e laureado com dois Jabutis, entre outros prêmios importantes, ele permanece praticamente desconhecido no resto do país. Tal quadro decerto começará a mudar a partir de agora. De contrato recém-assinado com a Record, Kiefer terá relançada toda a sua obra em plano nacional, incluindo incursões pelas searas da prosa, da poesia e do ensaio. “Logo tu repousarás também” e “Quem faz gemer a terra”, os dois títulos inaugurais da fornada, acabam de chegar às livrarias.

O primeiro trabalho é uma seleta com 14 contos inéditos, que confirmam a opção do escritor por uma narrativa realista e de cunho social. Em alguns momentos, como nos ótimos “Medo” e “O boneco de neve”, Kiefer consegue penetrar com sutileza naqueles misteriosos sulcos dramáticos que se escondem por detrás dos fatos cotidianos. Uma prosaica corrida de táxi pode, então, conduzir aos traumas mais agudos de um torturador, e uma brincadeira aparentemente inocente entre garotos, resultar em morte.

Resultado satisfatório no flerte com o fantástico

Quando flerta com o fantástico, caso de “O terceiro cão”, o resultado é igualmente satisfatório, embora as referências à própria literatura — através de personagens emblemáticos como o flanêur ou de poetas como Drummond — sejam, além de demasiadas, desnecessárias. Essas alusões, que evidenciam um incômodo conflito entre seus ofícios de professor de letras e autor, aparecem também no pretensamente borgiano “Rosa rosarum”. Estruturada sob a forma de um ensaio, inclusive com as tradicionais notas de rodapé, a trama centra-se na investigação do próprio Kiefer sobre as origens de “A biblioteca de Babel”, célebre conto do escritor argentino.

O grande senão do livro, contudo, é a luz desconfortável — porque exageradamente intensa — que o autor acende naquela zona de penumbra que deve pairar sobre a narrativa ficcional. Mesmo o realismo necessita desse espaço negociável entre o texto e o leitor, sob pena de sucumbir ao meramente discursivo — como ocorre, só para citarmos um exemplo, no engajado “Insônia”.

Já evidente na seleta de contos, tal traço se explicita ainda mais em “Quem faz gemer a terra”, novela publicada originalmente em 1991 e baseada no episódio verídico de um soldado morto em conflito com os sem-terra em Porto Alegre. A história é narrada sob o ponto de vista de Mateus, o camponês que assassinou o policial. Como se prestasse um depoimento, o protagonista faz uma retrospectiva da própria vida, desde a infância até o ingresso no assentamento e o posterior crime. É que “contar clareia”, como observa ele.

Kiefer brilha ao desenhar, com criativas metáforas, as recordações mais remotas de Mateus, referentes ao tempo em que ainda defrontava-se com as dúvidas e descobertas de criança. Coalhadas por imagens poéticas, as reminiscências abarcam a companhia da deliciosa figura do avô, que dormia num caixão a fim de aguardar pela morte devidamente preparado. São personagens que remetem ao lirismo do moçambicano Mia Couto, configurando uma espécie de poética da infância, povoada por cheiros, cores e sensações que, uma vez experimentados, a memória preserva para sempre.

Assim como nos contos, Kiefer imprime ritmo perfeito à narrativa, que flui sem solavancos. Mas à medida que avança, a novela vai perdendo matizes, até chegar ao puramente maniqueísta quando a questão social enfim se exacerba. Então o ideológico — ainda que supostamente meritório — se sobrepõe ao literário, e o viés político torna-se direto, como demonstra a passagem em que o protagonista, indignado com a repercussão dos atos dos sem-terra, indaga: “Agora, querem fazer da foice o símbolo da nossa violência. Me diga, não é violência o que passam os velhos doentes, as crianças e as mulheres nos acampamentos?”.

Preso às grades invisíveis do panfletarismo

Persuasivo em essência, esse jogo sem meio-termos que define mocinhos e bandidos espreme a ficção em sentenças categóricas, parecendo esquecer que mesmo a narrativa realista é uma “reescritura” do real. Como se fosse necessário oferecer ao leitor um prato-feito repleto de respostas, achata o campo da dúvida e confunde a perspectiva humanista — que viceja na obra de escritores como Albert Camus e Graciliano Ramos — com dicotomias redutoras. Nessa operação, a literatura de Kiefer acaba refém de sua própria ânsia: ao se querer livre e crítica, sucumbe no fim das contas às grades invisíveis do panfletarismo.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Nossas melhores mulheres (Paulo Bentancur)

O livro das mulheres, org. de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 120 p. Jornal Porto & Vírgula, Edição da Feira, Ano VI, n. 5, 03 de novembro de 1999, p. 3, Porto Alegre.

Um homem resolveu dar uma espiada no que as mulheres andam fazendo. Esse homem é Charles Kiefer, e como ele é escritor, as mulheres escolhidas são escritoras também. Conclusão: o objeto do desejo, no caso, são os textos dessas mulheres.

Há ou não motivos para excitação?

Essa resposta quem pode ter é o leitor que engrossa a fila de autógrafos do Livro das mulheres, hoje, às 17h, fila certamente concorrida. Treze foram as escolhidas, desde nomes pouco conhecidos (Sandra Fasolo, Consuelo Bassanesi) até estrelas conhecidas da nossa literatura recente (Martha Medeiros, Valeska de Assis, Cíntia Moscovich). Na apresentação, Kiefer, o organizador, assinala: “ouso afirmar que vivemos a era de ouro da contística gaúcha”. Com semelhante aposta, o escritor procurou selecionar um material exemplar daquelas que considera exemplares. Pronto. É só ficar no aguardo do veredicto do tempo.

Os demais nomes que formam o time feminino são: Adriana Lunardi, Lélia Almeida, Letícia Wierzchowski (que tem publicado bastante), Lísia Pessin Adam, Maria Helena Weber, Paula Taitelbaum, Vera Ione Molina e Vera Karam. À pergunta que talvez nos façamos diante da ausência das veteranas e consagradas como Lya Luft, Patrícia Bins e Tânia Faillace, ou mesmo de um nome já firmado como Jane Tutikian, a resposta, que o livro não dá, certamente está oculta: coletâneas assim estão em busca do novo, o próprio Kiefer observa “não me propus, ao reunir a seleção de autoras que constam desta antologia, extrair de seu trabalho uma poética do conto. Até porque o processo de criação literária riograndense está em pleno desabrochar”. Não é o caso, claro, de Lya, Patrícia, Tânia ou Jane, sob diversos aspectos com obra já realizada (embora, felizmente, sempre realizando e, portanto, por realizar).

Assim, as jovens selecionadas pelo organizador representam o futuro começando a acontecer agora – exatamente as possibilidades de nossa literatura nas mãos das mulheres. Essas possibilidades, a julgar pelos contos de Adriana Lunardi, Cíntia Moscovich, Lísia Pessin Adam e Valesca de Assis – a meu juízo os
quatro grandes momentos do conjunto -, são enormes. Pelo menos quanto a estas, a aposta de Kiefer já deu certo.

A feira das mulheres (Eduardo Nasi)

O livro das mulheres, org. de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 120 p. Revista Aplauso, Ano 2, nº 15, 1999, p.36-7, Porto Alegre.

Terra de homens bravos e pelejadores, montados em cavalos com facas nas botas? Nada disso. A feira do livro mostrou que os grandes estereótipos que cercam a literatura do Rio Grande do Sul podem estar por um triz. Tudo porque, depois de Lya Luft, Patrícia Bins e Lilá Ripoll, um grupo de mulheres está pronto
para segurar as rédeas das Letras do Estado.

O catalisador dessa mudança é O Livro das Mulheres (Mercado Aberto), organizado pelo também escritor Charles Kiefer, que reúne contos dos principais nomes da nova literatura feminina gaúcha. Há uns dois anos, quando Kiefer botou na cabeça que ia organizar o livro, a movimentação ainda era sutil. Cíntia Moscovich fazia um certo sucesso com O Reino das cebolas, seu livro de estréia. Martha Medeiros ainda estava restrita às páginas do caderno Donna, do jornal Zero Hora, além do bom resultado dos livros de poemas. E Vera Karam se aproximava meio de soslaio, firmando-se como dramaturga com a peça Dona Otília Lamenta muito.

Repare-se em Martha Medeiros, por exemplo. A poeta e cronista estréia no conto em O Livro das Mulheres. Se dá bem, mas não é uma surpresa. Crônicas como "Mulher de um Homem Só", do supersucesso que é a antologia Trem Bala (L&PM), já eram contos. Ou seja: os contos de Martha já circulavam pelos jornais há um tempo, sem que ninguém percebesse. Aliás, as crônicas da autora estão marcando um estilo firme e gracioso. Até pouco tempo atrás, escrever era um hobby para Martha Medeiros. Hoje, está mostrando que será uma das maiores cronistas deste país. Letícia Wierzchowski é outro fenômeno, pelo menos no que se refere à qualidade de livros. Do ano passado para cá, lançou três livros individuais (O Anjo e o resto de nós, O Anuário dos amores e Prata do tempo), participou de duas antologias de contos (Contos de Oficina 20 e O Livro das Mulheres) e publicou os e-mails que trocou com o marido Marcelo pires (eu@teamo.com.br). Prata do Tempo (L&PM) é o mais recente romance da moça. Conta uma daquelas sagas de uma família inteira, que começa com o avô do personagem central e acaba com o sujeito e os netos no colo. Como, alias, já acontecia com O Anjo e o resto de nós. Apesar de muitas diferenças gritantes com O Anjo, é inevitável comparar. E o leitor que desconhece os contos de Letícia pode ser levado a pensar que se trata de autora de uma história só. Vai perder uma boa autora, tudo por causa de uma fórmula que não precisava ser repetida tão cedo.Também com livro recém-publicado pela L&PM, a poeta Paula Taitelbaum também estréia no conto com a antologia de Kiefer. Com Sem vergonha, prossegue a carreira de poeta, iniciada ainda no ano passado com o ótimo Eu versos Eu. No novo livro, Paula está ainda mais segura no que faz. A base da poesia de Paula é o jogo de palavras, um jeito fácil de cair num vazio sem significado algum. Porém, Paula sabe brincar com o som das palavras sem esquecer de que há algo a ser dito. Os poemas não são vazios nem chatos. Só uma coisa: o conto deixou um gosto de quero mais, e agora Paula Taitelbaum está devendo um livro de prosa aos seus leitores.

Os pontos em comum entre todas essas mulheres é o cenário urbano e a narrativa com um pé no intimismo. Pode-se especular diversos motivos para isso. Qualquer hipótese será, no máximo, um problema acadêmico, e qualquer resposta poderá ser contestada pelas autoras.

Veja-se os trabalhos de Cíntia Moscovich, Valesca de Assis e Adriana Lunardi.

Nenhuma delas teve livro próprio lançado este ano, o que é uma pena. As três sabem combinar enredo e linguagem de uma forma excepcional. E outra peculiaridade: nos contos do trio, o leitor vai encontrar um desfecho muito bem pensado, que foge do lugar comum. Mais um destaque dessa feira e que está em
O Livro das Mulheres é Lélia Almeida, que também lançou Querido Arthur (WS Editor), uma narrativa epistolar escrita entre Santa Cruz do Sul – onde a escritora é professora – e a província argentina de Mendonza.Lélia, que conhece como poucos a literatura feminina contemporânea da América Latina, mostra que sabe sair da teoria e usar na prática da escrita todo o conteúdo de seu trabalho na universidade.

Vera Karam, que começou a escrever textos para o teatro e, no ano passado, consagrou-se tradutora do inglês premiada com um troféu Açoriano, estréia na prosa com bons textos. E também lança u livro de contos só dela: Há um Incêndio sob a Chuva Rala (Mercado Aberto). Algumas esquetes de Vera escritas tempos atrás (e publicadas no livro Dona Otília lamenta muito) já mostravam um bom domínio do texto ficcional, o que os novos textos confirmam.

Para encerrar a seleção de O livro das Mulheres, resta lembrar Lízia Pessin Adam e Vera Ione Molina, e as estreantes Consuelo Bassanesi e Sandra Fasolo. As quatro, porém, não encerram a lista das mulheres da Feira do livro. O desfecho fica por conta da novela Endiabrada, de Dorothy Camargo Gallo (WS Editor), dos contos Restos do Dia, de Maria Moura (IEL), e de três livros de poemas: Criaturas Minhas de Célia Maria Maciel (WS Editor), Teceres, de Cássia Pinto (IEL), e Morder a Polpa, de Berenice Sica Lamas (Movimento). Sinal de que, se Kiefer quiser, dá para publicar um outro Livro das Mulheres. Porque boas escritoras para recheá-lo o Rio Grande do Sul já mostrou que tem de sobra.