domingo, 18 de outubro de 2009

Caminhos novos (Deonísio da Silva)

O pêndulo do relógio, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 64p. Jornal Tchê!, n. 33, julho de 1984, p. 11. Porto Alegre.

Há alguns anos, o escritor Moacyr Scliar, que é também médico, revelava, em mesa-redonda que discutia os rumos da literatura no sul do país, que o Rio Grande liderava uma triste estatística: era o Estado em que ocorriam mais suicídios. A uma platéia atônita, completou a informação: o instrumento mais usado era a corda.

O drama de Alfredo Müller, personagem da mais recente novela de Charles Kiefer, revela outras faces dessa clandestinidade. A imagem do gaúcho folgazão, livre, monarca dos pampas, garbosamente vestido, montado em fogoso corcel, vai sendo retificada pouco a pouco. A ficção, encarregada de realizar nesse continente a história secreta dos povos, tem dado a contribuição mais significativa. O gaúcho foi posto a pé, por Cyro Martins; decadente e extraviado, por Josué Guimarães; e sem discurso e sem poder, por numerosos outros ficcionistas.

Há alguns anos, enquanto vários meninos eram fulgurantes promessas, se deixassem de contemplar apenas o próprio umbigo (esta era e é uma condição essencial), Charles Kiefer, pela qualidade das leituras que empreendia quando morava numa das regiões agrárias mais mecanizadas do Brasil, aparecia como uma esperança singular.

Os que tiveram paciência de acompanhá-lo até aqui, saberão do que estou falando. Acompanho sua prosa desde às pequenas edições tornadas públicas por este gênio editorial do Grande do Sul dos anos 70, o Intrépido Rovilio Costa. Depois, vi sua novela Caminhando na Chuva (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982) obter o reconhecimento da crítica e do público (está agora em segunda edição). É impressionante o percurso desse menino! Talento e trabalho estão fazendo de Charles Kiefer um dos melhores ficcionistas da atual safra gaúcha da literatura brasileira.

A epígrafe de Steinbeck não vem de ornamentação. O pêndulo do relógio retoma o drama de As vinhas da Ira. A implantação do capitalismo num meio agrário onde a lentidão do tempo dá a imagem de um pêndulo inerte - lá o tempo não passa por muitos séculos, de pai para filho desde priscas eras - ocorreu antes nos Estados Unidos, na Califórnia de Steinbeck. As leis econômicas são inexoráveis. A literatura que se ocupa desses temas – o abandono forçado do campo, a inchação das periferias urbanas etc. – só pode ser uma literatura de protesto. Charles Kiefer não é o Steinbeck do Rio Grande do Sul. Não é, nem pode, nem deve, nem quer ser. Está fazendo seu próprio caminho. Nenhum escritor repete outro; se repete, repete mal. E Charles tem competência suficiente para se estabelecer por conta própria, como, alias; já se estabeleceu. Sua prosa não pode mais ser ignorada. O que quero dizer, a propósito da comparação com As vinhas da Ira, é que a situação da agricultura brasileira, em especial a do Rio Grande do Sul, ficou multo parecida com os eventos que inspiraram Steinbeck na Califórnia.

O que está em questão, portanto, na prosa de protesto desse escritor, não é um ideário de panfleto que advogue coisas como a conservação do solo, mais virtudes, mais amor, etc.(1). Esses ingredientes podem engrossar o caldo de discursos religiosos, ou programas de agrônomos. Não adianta pregar que o homem é irmão do homem quando todo um sistema faz dele, contra seu querer, suas tradições, seu coração – o lobo do outro. A questão não é, pois: devemos conservar o solo? Devemos distribuir a terra? Devemos financiar a produção no Banco do Brasil? Devemos ouvir os agrônomos? Devemos formar uma cooperativa?

A questão, tal como em As vinhas da Ira, é: por que nós não podemos fazer o que nós queremos? O tema principal da novela de Charles Kiefer é o poder, arrebatado das mãos dos pequenos proprietários de lavouras ditas de subsistência, por outros donos, que lhes roubam até mesmo a subsistência.

Na ficção do Steinbeck é freqüente a aparição de homens que não sabem a causa de sua existência, a razão de viverem. São impelidos então, para atividades e concepções que satisfaçam sua necessidades religiosas. No discurso religioso, às vezes, descobrem que são iguais a outros e juntos podem ser fortes e partilhar do poder. A vanguarda da Igreja Católica vem descobrindo e catalisando essas forças e por isso tanto trabalho tem dado ao chamado sistema.

O sexo não é mais tabu, ao menos nos circuitos da literatura e das outras artes. Tabu, mesmo, no Brasil, é a questão fundiária, a questão da terra. Os hedonistas dos anos 70 chocaram as camadas mais conservadoras com histórias obscenas, indecorosas, que tomaram as sexualidades como temas e revelaram o avesso de usos e costumes intoleráveis. Essa obsessão embotou às vezes a visão de outros temas. A obsessão por Aldine Müller não pode evitar que vejamos também Alfredo Müller.

O reaparecimento da questão fundiária na ficção de escritores tão jovens é sintoma de grandes coisas. Chocar a burguesia é mais fácil do que derrubá-la, disse outro dia Hobsbawn, a propósito da chamada liberalização sexual do Ocidente.

Charles Kiefer deu um tratamento de primeira ordem a uma questão que redundou, por exemplo, no drama da Encruzilhada Natalino. O estatuto estático que marca o drama de Alfredo Müller, sua família e seus vizinhos, está limitado somente pela extensão da novela. Tomara que Charles Kiefer retome o tema numa ficção mais alongada. O pêndulo do relógio é uma novela enxuta, seca, demolidora, bonita e, sobretudo, multo bem escrita. Bem escrita no sentido pleno do termo: escreve-se para decifrar o mundo.

Quando enigmas como a morte de Alfredo Müller são bem decifrados em suas causas profundas, como é o caso, é porque o mundo esta sendo esclarecido e o autor escreveu bem. A palavra, agora, está com os outros leitores.

(1) MARKS, Lester. Thematic design in the novels on John Steinbeck. Paris, Mouton. 1971. p. 67.

A Face do Abismo (Almeida Fischer)

A face do abismo, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 156p. Jornal O Estado de São Paulo, Caderno Cultura, 25 de fevereiro de 1989. São Paulo.

Ao terminar a leitura de A Face do Abismo, novo romance de Charles Kiefer, que se desenvolve na cidade de San Martin, prestes a ser inundada pela construção de uma barragem, não pude evitar que me viesse à lembrança a expectativa de outra inundação, enfocada em Depois do último trem, do também gaúcho Josué Guimarães. Não que as histórias narradas nos dois romances tenham alguma coisa em comum além da construção da barragem, possam assemelhar-se em seus objetivos, em sua técnica de elaboração, em sua linguagem. Nada disso. A cidade de Abarama, ameaçada pela inundação, no romance de Josué Guimarães, não tem situação definida, nem população caracterizada, servindo o episódio apenas para a construção do clima fantástico pretendido pelo Autor. A de A Face do Abismo localiza-se no Alto Uruguai, na divisa com a Argentina, e é habitada por colonos alemães.

Acontece, porém, que o bom leitor faz indagações ao texto, buscando respostas. Assim, a pergunta se me impôs: terá havido alguma cidade gaúcha conhecida, que tenha sido inundada em decorrência da construção de uma barragem? Consultei livros e pessoas e nada encontrei nesse sentido. Tanto Abarama quanto San Martin devem ser cidades ou povoados criados pelos dois escritores do Rio Grande do Sul. Muitas barragens têm sido construídas no Brasil com a inundação de cidades e vilas. Mas não em terras gaúchas.

A inventiva de Charles Kiefer deslocou colonos alemães para a zona do alto Uruguai, fazendo erguer-se, na área que teria sido ocupada pelos índios guaranis, exterminados pelos bugreiros, o espaço ficcional em que se desenvolve seu romance. A verdade é que o talento do escritor tornou a cidade algo tão vivo e verdadeiro que ela passou a existir de fato na literatura brasileira. A realidade comum não interessa à arte literária senão como medida de transfiguração. O que importa é tão-somente a realidade literária.

O fascínio que as aproximações exercem sobre mim é responsável pelas digressões – creio que pertinentes – acima feiras, que poderiam ser estendidas, no que se refere à construção do espaço ficcional, a numerosos romances da melhor qualificação.

Em verdade, San Martin, cuja história, no romance, Alberta Zeller, vereadora do PMD, conta ao neto um dia antes do afogamento de suas casas e fantasmas, é uma pequena cidade de características bem marcadas, com seus tipos humanos mergulhados nos problemas da comunidade, miúdos problemas de resto, ligados à Intendência Municipal, às farras com as raparigas do meretrício, à demarcação de terras e outros desse tipo. No bar do Nicanor, principal ponto de reunião, os homens bebericam relembrando caçadas, revoluções, heroísmos e outras amenidades. Alguns, já sob os efeitos do álcool, vêem-se de repente diante de sua própria consciência, das suas carências, de sua solidão e repetem confidências, as mesmas de sempre, revelando sonhos e perplexidades existenciais. A notícia da construção da barragem altera fundamentalmente a rotina dessas criaturas, obrigando-as a encarar a escura face do amanhã. Resta dizer, talvez mais explicitamente, que A Face do Abismo é um romance da melhor qualificação, que se lê com interesse, escrito em muito boa linguagem literária e com técnica bastante moderna.

Acidentes de percurso (André do Carmo Seffrin)

A face do abismo, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 156p. Jornal Rio Zona Sul, fevereiro de 1989. Rio de Janeiro.

Depois de um excelente andamento – por muitas vezes usando com propriedade soluções cinematográficas num contraponto muito bem montado – o recente romance de Charles Kiefer – A Face do Abismo – perde acentuadamente a força nas últimas páginas. O autor soluciona o desfecho com um longo monólogo de um dos personagens-chave (Gumercindo Rosas), onde não se encontra mais que a repetição de tudo o que havíamos acompanhado até ali.

Mas temos muito a favor deste escritor. Em A Face do Abismo ele abandona temporariamente (?) Pau d’Arco para contar a história de fundação e desaparecimento de San Martin. Mais do que um romance que nos dá prazer em ler e reler, A Face do Abismo é o salto de percurso já esperado após Valsa Para Bruno Stein. Há um inegável domínio verbal e episódico no autor, um poder absoluto sobre os personagens e uma nítida capacidade de nos fazer sentir em feliz convívio com qualquer um deles. Amamos não só as mulheres cuja vida heróica sucumbindo ao peso de seus homens nos punge e castiga, mas também a estes homens impiedosos, ignorantes e bestiais. A história da fundação da cidade pelo bugreiro José Tarquino Rosas e o curso interessante desse rio histórico no tempo, nos é passada em capítulos-relâmpagos, num contraponto até certo ponto anárquico mas caprichosamente bem urdido a partir da metade do livro. Não lhe escapam oportunidades de humor, no rastro dos melhores ficcionistas gaúchos, a exemplo de Erico Verissimo e Josué Guimarães, aos quais Charles Kiefer hoje se filia. O romancista, estou certo, ultrapassará tranqüilamente qualquer entrave, porque tem talento, sem dúvida, para a realização de uma obra significativa no Brasil contemporâneo.

Aos ventos da modernização (Sônia Salomão Khéde)

Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 175p. Jornal O Globo, 16 de novembro de 1986, Caderno II, Rio de Janeiro.

A partir do romance regionalista de 30 a temática do Nordeste conquistou a todos, não só pela necessária contundência da denúncia social, como pela forma com que as cidades metropolitanas absorveram a discussão de uma problemática também inerente a elas: a emigração e o conseqüente nascimento de outro Nordeste dentro do chamado Sul-maravilha, com todos os conflitos da descaracterização dos valores e do mimetismo cultural que gerações e gerações se viram forçadas a viver, na mais completa marginalidade.

Talvez esse fato explique o pouco conhecimento de autores do Extremo Sul do País, principalmente dos mais jovens, como Charles Kiefer, 28 anos, nascido em pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul.

A grande contribuição valorativa do autor para a prosa brasileira contemporânea esta não só na maturidade com que tece a estrutura narrativa de seu mais recente romance, mas principalmente no modo pioneiro como o faz. Tratando as relações interpessoais numa família de imigrantes alemães, Charles Kiefer aborda as dificuldades de posicionamento decorrentes do choque entre os rígidos códigos familiares centrados nos ensinamentos da Bíblia e a crescente destruição da estrutura econômica da pequena propriedade agrícola em que o chefe familiar podia exercer o seu mais avassalador domínio em nome da honra, do valor do trabalho e de uma virtude cada vez mais difícil de ser absorvida pelos mais novos. Com a falência da monocultura e a entrada dos mass-media nesses lares há como uma luta entre anjos e demônios, ou seja, entre a tradição e as mensagens modernosas veiculadas. Bruno Stein, personagem central do romance, é o patriarca atingido pelos ventos da modernização. Rico e complexo personagem, vê-se aos 70 anos no centro de uma roda de fogo. Uma paixão proibida, o medo da morte, a rebeldia das netas e as reminiscências da infância que explicam cada vez mais a inusitada faceta de sua personalidade: a de artista, modelador do barro.

Sem investir explicitamente num discurso apologético contra as forças desagregadoras do capitalismo, Kiefer encaminha questões relevantes, de dentro para fora, estabelecendo uma tensão entre a estrutura familiar e a econômico-social mais ampla, como constata Arnaldo Campos na orelha do livro. São elas: a razão da arte, a crise de valores, os conflitos étnicos e as perspectivas de libertação do controle invisível, mas eficiente legado pela tradição. Bruno Stein talvez seja o melhor exemplo da liberdade conquistada.

Livro que prende o leitor pelo ritmo da história, pela densidade dramática das cenas e pelo tom elegíaco de uma valsa para espantar fantasmas, Valsa para Bruno Stein coroa o trabalho já premiado de Charles Kiefer. Como a novela Caminhando na chuva e O pêndulo do relógio (Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro), apresentando-se como um desafio para o próprio autor que escolheu um caminho já trilhado pelos escritores "maiores". Há que continuá-lo.

Sob o céu do pampa gaúcho (Luthero Maynard)

A face do abismo, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 156p. Jornal Folha de São Paulo, 18 de junho de 1988, p. 18., São Paulo.

O gaúcho Charles Kiefer já havia demonstrado total domínio da técnica do conto e da capacidade de contar uma boa história quando publicou seu primeiro romance, Caminhando na Chuva, sucesso de crítica e de público em sucessivas edições. A Face do Abismo, seu último romance, confirma o talento e a competência evidenciados nas obras anteriores. A ação se passa na cidade imaginária de San Martin, prestes a ser encoberta pelas águas de uma represa e é comandada por José Tarquino Rosas, fundador e responsável pelo progresso local. Alternando presente, passado e futuro de forma organizada (sem as confusões dos iniciantes no gênero), Kiefer recria, com imagens de intensa beleza plástica, a fauna e o modo de ser e ver o mundo do colono que trabalha a terra com amor e respeito. Com a precisão de um cirurgião, ele desnuda a comédia humana presente em todo agrupamento humano, revelando as grandezas e misérias que caracterizam homens e mulheres de todas as épocas. Um livro gostoso e marcante.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A face do Abismo (Ubiratan Teixeira)

A face do abismo, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 156p. Jornal O Estado do Maranhão, 14 de agosto de 1988. Cultura. P. 17,

Em seu novo romance, A Face do Abismo, Charles Kiefer retoma os temas do Tempo — uma constante em sua obra —, do Destino e da Morte, conjugando-os habilmente como pano de fundo para expor, com precisão e lirismo, um tema maior que é o problema da terra e do homem na busca incessante de si mesmo.

Por trás da história de San Martin e de seus habitantes existe muito mais do que a simples história de uma cidade a ser invadida pelas águas de uma represa. A Face do Abismo é antes um hino de amor à terra e uma tentativa de preservação, através da literatura, dos fortes e ao mesmo tempo tão frágeis laços que compõem a integração do homem com a natureza, do homem com sua essência.

Numa estrutura tecnicamente muito bem organizada, em capítulos que alternam presente, passado e futuro, e cujo fio temporal é dado por José Tarquino Rosas, fundador e elemento responsável pelo progresso de San Martin — personagem que sintetiza o homem em todas as suas contradições, capaz de, em um momento, exterminar friamente índios adultos e crianças, e, em outro, poupar a vida a um casal de onças porque, no instante do tiro, estão nas “funções do amor” — o leitor vai encontrando aqui e ali os claros deixados propositadamente para a sua reconstrução do romance. Daí por que, com exceção de José Tarquino, Alberta Zeller e Gumercindo Rosas, os três tempos da narrativa, a maioria dos personagens é apenas delineada, embora se movimentem num espaço temporal de quase um século. Abertos, são esgotados, a exemplo do Destino, tantas vezes evocado, eles apresentam-se embrionários, à espera de sua reelaboração, que pode se dar ao nível da leitura ou, quem sabe, futuramente, compondo a trama de um novo trabalho do autor.

A linguagem, trabalhada com esmero, ganha relevo nos capítulos de José Tarquino, perpassados de referências à natureza, referências que se traduzem em minúcias e metáforas envolvendo a flora e a fauna ambientes, tão naturalmente incorporadas à fala e ao modo de ser do José Tarquino-bugreiro, que deixam saudade no leitor quando sua linguagem evolui a serviço do José Tarquino-empreendedor, dando a medida de sua transformação. Na fala de Nicanor, espectador das mazelas de San Martin e de seus habitantes, têm-se uma das imagens mais humanas deste A Face do Abismo, e que é a síntese do romance: “Você olha para um colono e vê que ele é um tronco, uma árvore, um elemento da própria terra. Aí você o arranca dali como se ele fosse sem raízes? No rosto de um colono você encontra os rios, as montanhas, as matas, os pássaros, os animais, as chuvas de inverno, o mormaço de verão, as tanajuras e as borboletas amarelas, os raios das noites de tempestade. No rosto de um colono você vê a terra, porque o rosto de um colono é um mapa”.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Literatura que comove (Mirian Pinheiro)

Quem faz gemer a terra, de Charles Kiefer – Editora Record, 156p. Jornal O Estado de Minas, 25 de março de 2007, p 2. Belo Horizonte.

Um jovem mata um soldado durante um enfrentamento e vai preso. Na prisão, ao contar e recontar sua história, acaba compreendendo o processo histórico que o levou até ali. Se não fosse o relato brilhante que permeia a obra, até que isso resumiria bem o livro de Charles Kiefer. Mas Quem faz gemer a terra vai além. Numa narrativa realista, sem nenhuma pretensão de fazer um resgate jornalístico do conflito agrário no país, o autor conta, cheio de prosa, a situação de injustiça social que, multas vezes, leva cidadãos de bem, como o personagem principal Mateus, a se perder pela vida.

O protagonista inventado por Kiefer também é, porém, um homem que relembra sua infância pobre, de ingenuidade matuta, mas feliz. Uma pessoa que, na meninice, chorou a morte do avô que lhe contava histórias; fugia das rezas em casa; roubava fruta nas terras do vizinho; levantou uma foice para matar um gambá; trabalhava feito burro e, num desses revezes da vida, foi parar, junto com a família, num acampamento de sem-terra. Lá, se apaixona, se casa, sofre e se envolve com as questões da.terra.

Mas que ninguém pense que o livro escorrega para a militância, para o panfletário. Embora trate de um colono sem terras, a história desse personagem aborda muito mais do que a constante e crescente injustiça social no Brasil. Revela a capacidade de um homem de amar, trazendo à tona questões existenciais que povoam o mundo masculino, cheio de angústias, indecisões e romantismo. O livro, que marca a reedição de toda a obra do escritor pela Editora Record foi inspirado num episódio real – a morte de um soldado com um golpe de foice dado por um sem-terra, durante um protesto, em 1990.


TOM DE CONFISSÃO

Quem faz gemer a terra tem como pano de fundo a temática social, mas é a vida, sempre uma encruzilhada, que o livro descreve, com muita sensibilidade. O Mateus de Charles Kiefer fala da dureza dos seus.dias, entre bombas e cassetetes, com o mesmo lirismo que conta sobre a angústia que sentiu até ter a coragem de dizer “Você quer namorar comigo?” ou, em outras passagens, como quando relembra das noites em vigília no acampamento, as mesmas em que, “na sombra”, ele se buscava. Assim, ele se conta, como no trecho em que diz: “Estou aprendendo a contar, cada vez que conto a minha história vejo ela melhor. Contar clareia. Antes de você partir, me diga: contar não é como seguir um estradão que se espalha pelo tempo com as curvas de um rio, o estrondo das cascatas e a modorra manhosa das enchentes? Principiei de um jeito, enveredei por outro. Fui e vim, feito folha em rodamoinho, me enredei na espuma. Não lhe contei tudo, é verdade, mas uma história tem fim?”

Parece ser tudo um recomeço para o protagonista que, um dia, matou um soldado, mas que foi um menino a quem o autor faz questão de revistar, até mesmo quando questiona se o Mateus que perdeu a razão e matou o soldado já não estava no menino que levantou a foice contra o gambá. “Se estava, a miséria temperou o aço da lâmina, aguçou o fio e me preparou para o desatino”, responde o personagem, revelando, sobretudo, o talento de Kiefer – que também parece não ter fim.

O escritor gaúcho é vencedor de três prêmios Jabuti e acaba de escrever um novo livro de contos, Logo tu repousarás também. Estreou na literatura em 1982 com Caminhando na chuva. É autor de Aventura no Rio Escuro, Valsa para Bruno Stein, A face do abismo, Dedos de pianista, Museu de coisas insignificantes, Os ossos da noiva, A última trincheira, O escorpião da sexta-feira, entre outros.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Pequena epopéia de San Martin (Caio Porfírio Carneiro)

A face do abismo, de Charles Kiefer — Ed. Mercado Aberto, 168p. Da Série Novo Romance. Diário do Grande ABC, 06 de maio e 1989, p. 5, Caderno Idéias & Livros, São Paulo.

A Face do Abismo é obra de ficção das mais belas e pungentes da moderna ficção brasileira. Como romance, foge não apenas da ortodoxia ou padrões mais ou menos estabelecidos para defini-lo, bem comportadamente, como tal. Vai além da reformulação técnica e aparente desordem formal e estrutural; vai além das surpresas imprevistas de cada capítulo descartável. É que emana do todo do livro, ao longo da temporalidade difusa da história de San Martin, uma intemporalidade maior, que amplia, em tempo e espaço, a própria limitação do tempo referida. É o milagre de qualquer boa ficção. Mas aqui isto acontece de forma surpreendente: o corriqueiro e o dia-a-dia é que são o suporte. Intercala-se entre eles e através deles apenas o silêncio, o grande silencio, que é o espaço oportuno e fundamental da ficção não escrita, destinada à inteligência do leitor, que , sente e observa a história no seu todo. Nunca vimos o nada dizer tanto. Certos capítulos parecem crônicas ou narrativas banais. E embora as personagens, das principais (poucas) às secundárias, sejam tão humanas e tangíveis dentro do cenário rústico que se civiliza aos poucos, é mais no disfarce delas que o drama e a história se constroem. Porque tudo é ligeiro, que não é a pressa nervosa e elíptica. Nem mesmo Gumercindo Rosas ou José Tarquino, tão presentes, são bem presentes assim. Três ou quatro atitudes e o comportamento deles dizem tudo. E essa fugacidade, esse pingue-pongue, dão a presença viva de San Martin. Charles Kiefer fê-la nascer, viver e entrar em pânico com a sombra da represa pronta para invadi-la, apenas com pinceladas expressionistas, que não precisaram ser muitas para compor-lhe o retrato em detalhes.

A linguagem é aquela bem própria do autor de Valsa para Bruno Stein. Não é mais apurada, é mais disfarçada, se este é o termo. Não é fácil escrever assim, bordejando sempre, certo de que o leitor encontrará o alvo e nele se enredará.

Com toques de memorialística, este romance, no sentido nobre do termo, mantém-se naquele ponto de equilíbrio do homem em simbiose com a natureza, em luta para vencê-la e com ela conviver. É quando a fauna e a flora humanizam-se e a civilização, nascida do desbravamento, mostra aquela face ideal de convivência.

A face do abismo (Roger Pardini)

A face do abismo, de Charles Kiefer — Ed. Mercado Aberto, 168p. Da série Novo Romance. Revista Infos Brésil, março de 1989, número 35, p. 15. Paris, França.

Roman sous forme de saga contant la fondation au début du siècle d’une bourgade mythique dans l’extrême sud du Brésil. Les récits – romancés ou non – sur la colonisation des régions frontalières du Rio Grande do Sul sont assez rares pour qu’on s’y attarde. Jorge Amado, géant de la littérature brésilienne et spécialiste du genro ne parle guére que du sertão et de Bahia, sa patrie. Quelques auteurs on parlé de I’Amazonie et de l´épopée des bandeirantes dans les Etats de Rio de Janeiro et de São Paulo mais, curieusement, assez peu du sud colonisé principalement par des immigrés italiens et allemands.

Nous sommes en 1985, la veille de l’évacuation de San Martin, petite ville fondée en 1903 destinée à disparaître sous les eaux d’un lac artificiel. “Tante Alberta’, fille illégitime do fondateur de San Martin, José Tarquino, raconte à son neveu et futur écrivain l’histoire de la ville. Le réclt est entrecoupé de flash-back remontant à la jeunesse de José, luil-même fils illegitime d’un fazendeiro blanc et d’une métisse indienne. José est un aventurier, un “bugreiro”, chasseurs d’indiens sauvages (bugres) qu´il tue sans pitié. C’est à la suite du massacre d’un groupe de guaranis qu’il décide de fonder une colonie sur l´emplacement même de leur village incendié.

Cest ensuite le lent développment du village, I’installation des colons, allemands pour la plupart, attirés par les riches terres vierges. Les luttes contre les indiens, les intrigues, les règlements de comptes, les mariages, les naissances et lês morts. Des événements historiques sont évoqués: la révolution fédéraliste de 1893, soulèvement des provinces du sud contre le pouvoir central, la guerre civile de 1923, la révolution de 1930 et l´instauration de la dictature Vargas. L´auteur a eu l’heureuse idée de compléter son roman par une chronologie des faits depuis la naissance de Ia mère de José Tarquino jusqu’à I’inondation de la ville. La biographie d’une dizeino do protagonistes de Ia saga figure égaloment.

A Face do Abismo évoque immanquablement le dernier roman de Jorge Amado Tocaia Grande qui raconte aussi la naissance d’une bourgade dans I’intérieur de l´Etat de Bahia. Même ambiance virile et violente, mêmes personnages: le fondateur, homme d’action taciturne, cruel, dur mais juste; les prostituées au grand coeur; les femmes légitimes courageuses mais effacées et l´inévitable commerçant libanais, travailleur, rusé et entreprenant. Kiefer est ancore loin d’avoir le souffle épique et chaleureux d’Amado mais il n’a que 31 ans et son style est alerte. Originaire de l´intéreur de l´Etat du Rio Grande do Sul, il est I’auteur d’une demi-douzaine d’ouvrages dont un recueil de contes qui a remporté un vif succés. Il serait toutefois prématuré de voir em un lui um futur Faulkner brésilien comme proclame avec enthousiasme um critique de São Paulo.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Nos embalos de um texto inteligente (Leda Rita Cintra)

Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer — Ed. Merca¬do Aberto, 176p. Cz$ 55,00. Da série Novo Romance. Jornal O Estado de São Paulo, Caderno 2, p. 07, 20 de junho de 1987.

Animado por uma narrativa intercalada, Valsa para Bruno Stein chega ao baile das letras

Para seu primeiro romance, Valsa para Bruno Stein (Editora Mercado Aberto. 175 páginas. CzS 235,00), Charles Kiefer trouxe o poder encantatório da linguagem poética que impregnava sua novela de estréia, Caminhando na Chuva, de 1982. De sua segunda novela, O Pêndulo do Relógio, 1984, ambas publicadas pela mesma Mercado Aberto, trouxe a força narrativa que arrasta o leitor até a última página.

Pau d'Arco, a pequena cidadezinha, quase aldeia, criada por ele para abrigar seus personagens, também não poderia faltar. E aí está. Repressiva, mesquinha, assistindo impassível aos dramas e conflitos dos personagens. Intocada, assiste à passagem esmagadora do progresso, que avança grosseiramente arrasando, com suas máquinas e seu capitalismo monocultor e selvagem as tradições culturais e econômicas que os descendentes dos imigrantes alemães criaram a seu redor.

E vê o ruir do império de Bruno Stein (personagem principal da obra), sobre sua família. Vê a partida de Verônica, sua nela mais velha, em busca de outros horizontes que não os de sua avó Olga e os de sua mãe Valéria, "resignadas ao silêncio e a solidão". Vê, sobretudo, o velho, relegado, sozinho, igual a cachorro doente, se refugiar em um velho galpão de sua olaria para, então sim, moldar à sua maneira, no barro, os personagens de sua família que na realidade escapam de seu controle. É no barro, em suas esculturas que os aprisiona. Mas, ainda uma vez impotente, não pode transmitir-lhes o sopro de vida, exclusividade do Criador.

Resta a Bruno o consolo de uma religião dominada por um Deus "cruel e vingativo” que ensina, antes de tudo, o pecado. E pecado é ir a bailes, ao carnaval, assistir à televisão, "essa máquina da depravação".

Esmagado entre essa religião repressiva e um progresso para ele desastroso, esgotadas suas negações e possibilidades, o personagem entrega-se ao pecado maior, ao prazer maior – a paixão que sente pela nora. No entanto, essa entrega é apenas o reflexo de seu desmoronar. É o personagem inteiro que se fraciona, se divide e, finalmente, se entrega. Não, como seria de esperar, como um perdedor, mas um vencedor que diante da luz azulada da televisão conclui que "acabara de acrescentar mais um prazer à sua já tão atribulada existência". E que, a partir daí, novamente se reincorporara, inteiro.

Prazer que Charles Kiefer modela através de uma narrativa intercalada. Cada personagem, num movimento pendular do foco narrativo, é acompanhado pela duração de seu dia, ao fim do qual é abandonado exposto, exausto, para que o movimento possa ser reiniciado, com o foco incidindo sobre outro personagem, que, por sua vez, será esmiuçado. O resultado desse procedimento estilístico é que cada fato ou personagem será visto relatado por diferentes visões. O que só faz acrescentar ao texto desse excelente autor gaúcho, elegante, conciso e econômico, mais um prazer. Que nem a péssima qualidade gráfica, que o texto e o autor não merecem, consegue empanar.

Rodopios e pausas da paixão

(Resenha de Geraldo Galvão Ferraz)

Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer — Ed. Mercado Aberto, 176p. Cz$ 55,00. Da série Novo Romance. Revista Leia, julho de 1986, São Paulo, SP.

Demorou, mas afinal Charles Kiefer se animou a passar das pequenas novelas para o romance, uma decisão que O Pêndulo do Relógio (1984) já implorava dele, trazendo linhas narrativas que sufocavam nos estreitos limites das magras páginas da excelente obra do escritor gaúcho.

Em Valsa para Bruno Stein, Kiefer confirma tudo que prometiam textos anteriores como Caminhando na Chuva (1982) e O Pêndulo. No formato maior, ele se mostra igualmente seguro no domínio da ação e do diálogo, hábil na fixação do instante significativo ou do detalhe essencial, além de dono de um talento inegável para contar gostosamente uma história.

História que no caso é a de Bruno Stein, septuagenário dono de uma olaria na região noroeste do Rio Grande do Sul, onde a monocultura da soja e as rápidas mudanças sociais dela resultantes são um tema em que o autor deita e rola. Charles Kiefer chegou, inclusive, a criar ali uma cidade — Pau d'Arco — para ser o palco iluminado onde desfilam seus personagens. Mas voltando a Bruno, sua trajetória é a linha mestra do romance, da caracterização dos seus prazeres na vida (o fumo, a leitura do "Fausto" goethiano e da Bíblia, a música e a paixão de modelar o barro) até o encontro final de um aparentemente inesperado prazer, o sexo crepuscular e incestuoso com a nora Valéria, clímax de uma atração desesperada e inescapável tipo paixão de tragédia clássica.

No pequeno mundo da olaria de Bruno, paixões não faltam. Nem conflitos, como o do chefe da casa, dividido entre a rigidez luterana e a tentação do pecado, cujo emissário mais evidente, para ele, é a televisão, símbolo do novo e do diabólico (praticamente a mesma coisa para o universo congelado no tempo de Bruno). As mulheres da casa vivem hipnotizadas pela medusa eletrônica e as vidas fictícias das novelas; a nora mal casada sonha com um amor que a redima da mediocridade a que é condenada pelo marido.

Verônica, neta de Bruno, opta por largar o namorado (que lhe prometia sorte igual) e rompe as fronteiras da olaria, indo estudar em Porto Alegre. Presos ali pela necessidade, os empregados da olaria, Gabriel, Mário e Erandi são coadjuvantes do fundamental que é a luta que se trava dentro do Bruno Stein, ante a possibilidade dele moldar seu destino de modo diverso ao estabelecido, numa chance que a idade já não lhe permitia esperar.

Charles Kiefer, sádico criador, imiscui outras vidas, outros problemas, outras sortes, retardando e esmiuçando nuanças da guerra pela alma de Bruno Stein, ao balanço dos rodopios e pausas da paixão em ritmo de valsa da sua narrativa. O leitor, parceiro arrebatado, só tem que se deixar levar (tropeçando, contudo, nos muitos erros de português do romance que parece — e não merece — ter sido editado sem revisão), esperando agora que Charles Kiefer persista na sua decisão de optar pelo gênero literário que lhe dá maiores condições de voar ato.

domingo, 27 de setembro de 2009

"Esta Fortuna Crítica reúne entrevistas, reportagens, estudos, ensaios, resenhas e críticas sobre a obra de Charles Kiefer."