terça-feira, 13 de outubro de 2009

Literatura que comove (Mirian Pinheiro)

Quem faz gemer a terra, de Charles Kiefer – Editora Record, 156p. Jornal O Estado de Minas, 25 de março de 2007, p 2. Belo Horizonte.

Um jovem mata um soldado durante um enfrentamento e vai preso. Na prisão, ao contar e recontar sua história, acaba compreendendo o processo histórico que o levou até ali. Se não fosse o relato brilhante que permeia a obra, até que isso resumiria bem o livro de Charles Kiefer. Mas Quem faz gemer a terra vai além. Numa narrativa realista, sem nenhuma pretensão de fazer um resgate jornalístico do conflito agrário no país, o autor conta, cheio de prosa, a situação de injustiça social que, multas vezes, leva cidadãos de bem, como o personagem principal Mateus, a se perder pela vida.

O protagonista inventado por Kiefer também é, porém, um homem que relembra sua infância pobre, de ingenuidade matuta, mas feliz. Uma pessoa que, na meninice, chorou a morte do avô que lhe contava histórias; fugia das rezas em casa; roubava fruta nas terras do vizinho; levantou uma foice para matar um gambá; trabalhava feito burro e, num desses revezes da vida, foi parar, junto com a família, num acampamento de sem-terra. Lá, se apaixona, se casa, sofre e se envolve com as questões da.terra.

Mas que ninguém pense que o livro escorrega para a militância, para o panfletário. Embora trate de um colono sem terras, a história desse personagem aborda muito mais do que a constante e crescente injustiça social no Brasil. Revela a capacidade de um homem de amar, trazendo à tona questões existenciais que povoam o mundo masculino, cheio de angústias, indecisões e romantismo. O livro, que marca a reedição de toda a obra do escritor pela Editora Record foi inspirado num episódio real – a morte de um soldado com um golpe de foice dado por um sem-terra, durante um protesto, em 1990.


TOM DE CONFISSÃO

Quem faz gemer a terra tem como pano de fundo a temática social, mas é a vida, sempre uma encruzilhada, que o livro descreve, com muita sensibilidade. O Mateus de Charles Kiefer fala da dureza dos seus.dias, entre bombas e cassetetes, com o mesmo lirismo que conta sobre a angústia que sentiu até ter a coragem de dizer “Você quer namorar comigo?” ou, em outras passagens, como quando relembra das noites em vigília no acampamento, as mesmas em que, “na sombra”, ele se buscava. Assim, ele se conta, como no trecho em que diz: “Estou aprendendo a contar, cada vez que conto a minha história vejo ela melhor. Contar clareia. Antes de você partir, me diga: contar não é como seguir um estradão que se espalha pelo tempo com as curvas de um rio, o estrondo das cascatas e a modorra manhosa das enchentes? Principiei de um jeito, enveredei por outro. Fui e vim, feito folha em rodamoinho, me enredei na espuma. Não lhe contei tudo, é verdade, mas uma história tem fim?”

Parece ser tudo um recomeço para o protagonista que, um dia, matou um soldado, mas que foi um menino a quem o autor faz questão de revistar, até mesmo quando questiona se o Mateus que perdeu a razão e matou o soldado já não estava no menino que levantou a foice contra o gambá. “Se estava, a miséria temperou o aço da lâmina, aguçou o fio e me preparou para o desatino”, responde o personagem, revelando, sobretudo, o talento de Kiefer – que também parece não ter fim.

O escritor gaúcho é vencedor de três prêmios Jabuti e acaba de escrever um novo livro de contos, Logo tu repousarás também. Estreou na literatura em 1982 com Caminhando na chuva. É autor de Aventura no Rio Escuro, Valsa para Bruno Stein, A face do abismo, Dedos de pianista, Museu de coisas insignificantes, Os ossos da noiva, A última trincheira, O escorpião da sexta-feira, entre outros.

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