quarta-feira, 14 de outubro de 2009

A face do Abismo (Ubiratan Teixeira)

A face do abismo, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 156p. Jornal O Estado do Maranhão, 14 de agosto de 1988. Cultura. P. 17,

Em seu novo romance, A Face do Abismo, Charles Kiefer retoma os temas do Tempo — uma constante em sua obra —, do Destino e da Morte, conjugando-os habilmente como pano de fundo para expor, com precisão e lirismo, um tema maior que é o problema da terra e do homem na busca incessante de si mesmo.

Por trás da história de San Martin e de seus habitantes existe muito mais do que a simples história de uma cidade a ser invadida pelas águas de uma represa. A Face do Abismo é antes um hino de amor à terra e uma tentativa de preservação, através da literatura, dos fortes e ao mesmo tempo tão frágeis laços que compõem a integração do homem com a natureza, do homem com sua essência.

Numa estrutura tecnicamente muito bem organizada, em capítulos que alternam presente, passado e futuro, e cujo fio temporal é dado por José Tarquino Rosas, fundador e elemento responsável pelo progresso de San Martin — personagem que sintetiza o homem em todas as suas contradições, capaz de, em um momento, exterminar friamente índios adultos e crianças, e, em outro, poupar a vida a um casal de onças porque, no instante do tiro, estão nas “funções do amor” — o leitor vai encontrando aqui e ali os claros deixados propositadamente para a sua reconstrução do romance. Daí por que, com exceção de José Tarquino, Alberta Zeller e Gumercindo Rosas, os três tempos da narrativa, a maioria dos personagens é apenas delineada, embora se movimentem num espaço temporal de quase um século. Abertos, são esgotados, a exemplo do Destino, tantas vezes evocado, eles apresentam-se embrionários, à espera de sua reelaboração, que pode se dar ao nível da leitura ou, quem sabe, futuramente, compondo a trama de um novo trabalho do autor.

A linguagem, trabalhada com esmero, ganha relevo nos capítulos de José Tarquino, perpassados de referências à natureza, referências que se traduzem em minúcias e metáforas envolvendo a flora e a fauna ambientes, tão naturalmente incorporadas à fala e ao modo de ser do José Tarquino-bugreiro, que deixam saudade no leitor quando sua linguagem evolui a serviço do José Tarquino-empreendedor, dando a medida de sua transformação. Na fala de Nicanor, espectador das mazelas de San Martin e de seus habitantes, têm-se uma das imagens mais humanas deste A Face do Abismo, e que é a síntese do romance: “Você olha para um colono e vê que ele é um tronco, uma árvore, um elemento da própria terra. Aí você o arranca dali como se ele fosse sem raízes? No rosto de um colono você encontra os rios, as montanhas, as matas, os pássaros, os animais, as chuvas de inverno, o mormaço de verão, as tanajuras e as borboletas amarelas, os raios das noites de tempestade. No rosto de um colono você vê a terra, porque o rosto de um colono é um mapa”.

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