quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Pequena epopéia de San Martin (Caio Porfírio Carneiro)

A face do abismo, de Charles Kiefer — Ed. Mercado Aberto, 168p. Da Série Novo Romance. Diário do Grande ABC, 06 de maio e 1989, p. 5, Caderno Idéias & Livros, São Paulo.

A Face do Abismo é obra de ficção das mais belas e pungentes da moderna ficção brasileira. Como romance, foge não apenas da ortodoxia ou padrões mais ou menos estabelecidos para defini-lo, bem comportadamente, como tal. Vai além da reformulação técnica e aparente desordem formal e estrutural; vai além das surpresas imprevistas de cada capítulo descartável. É que emana do todo do livro, ao longo da temporalidade difusa da história de San Martin, uma intemporalidade maior, que amplia, em tempo e espaço, a própria limitação do tempo referida. É o milagre de qualquer boa ficção. Mas aqui isto acontece de forma surpreendente: o corriqueiro e o dia-a-dia é que são o suporte. Intercala-se entre eles e através deles apenas o silêncio, o grande silencio, que é o espaço oportuno e fundamental da ficção não escrita, destinada à inteligência do leitor, que , sente e observa a história no seu todo. Nunca vimos o nada dizer tanto. Certos capítulos parecem crônicas ou narrativas banais. E embora as personagens, das principais (poucas) às secundárias, sejam tão humanas e tangíveis dentro do cenário rústico que se civiliza aos poucos, é mais no disfarce delas que o drama e a história se constroem. Porque tudo é ligeiro, que não é a pressa nervosa e elíptica. Nem mesmo Gumercindo Rosas ou José Tarquino, tão presentes, são bem presentes assim. Três ou quatro atitudes e o comportamento deles dizem tudo. E essa fugacidade, esse pingue-pongue, dão a presença viva de San Martin. Charles Kiefer fê-la nascer, viver e entrar em pânico com a sombra da represa pronta para invadi-la, apenas com pinceladas expressionistas, que não precisaram ser muitas para compor-lhe o retrato em detalhes.

A linguagem é aquela bem própria do autor de Valsa para Bruno Stein. Não é mais apurada, é mais disfarçada, se este é o termo. Não é fácil escrever assim, bordejando sempre, certo de que o leitor encontrará o alvo e nele se enredará.

Com toques de memorialística, este romance, no sentido nobre do termo, mantém-se naquele ponto de equilíbrio do homem em simbiose com a natureza, em luta para vencê-la e com ela conviver. É quando a fauna e a flora humanizam-se e a civilização, nascida do desbravamento, mostra aquela face ideal de convivência.

Um comentário:

  1. Sobre "A face do Abismo" ainda há a dissertação de mestrado, defendida na UFSC em 2004 por Simone Aires Vogel,e que tem por título "Figuras femininas de origem alemã no romance A Face do abismo, de Charles Kiefer".

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