domingo, 18 de outubro de 2009

Caminhos novos (Deonísio da Silva)

O pêndulo do relógio, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 64p. Jornal Tchê!, n. 33, julho de 1984, p. 11. Porto Alegre.

Há alguns anos, o escritor Moacyr Scliar, que é também médico, revelava, em mesa-redonda que discutia os rumos da literatura no sul do país, que o Rio Grande liderava uma triste estatística: era o Estado em que ocorriam mais suicídios. A uma platéia atônita, completou a informação: o instrumento mais usado era a corda.

O drama de Alfredo Müller, personagem da mais recente novela de Charles Kiefer, revela outras faces dessa clandestinidade. A imagem do gaúcho folgazão, livre, monarca dos pampas, garbosamente vestido, montado em fogoso corcel, vai sendo retificada pouco a pouco. A ficção, encarregada de realizar nesse continente a história secreta dos povos, tem dado a contribuição mais significativa. O gaúcho foi posto a pé, por Cyro Martins; decadente e extraviado, por Josué Guimarães; e sem discurso e sem poder, por numerosos outros ficcionistas.

Há alguns anos, enquanto vários meninos eram fulgurantes promessas, se deixassem de contemplar apenas o próprio umbigo (esta era e é uma condição essencial), Charles Kiefer, pela qualidade das leituras que empreendia quando morava numa das regiões agrárias mais mecanizadas do Brasil, aparecia como uma esperança singular.

Os que tiveram paciência de acompanhá-lo até aqui, saberão do que estou falando. Acompanho sua prosa desde às pequenas edições tornadas públicas por este gênio editorial do Grande do Sul dos anos 70, o Intrépido Rovilio Costa. Depois, vi sua novela Caminhando na Chuva (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982) obter o reconhecimento da crítica e do público (está agora em segunda edição). É impressionante o percurso desse menino! Talento e trabalho estão fazendo de Charles Kiefer um dos melhores ficcionistas da atual safra gaúcha da literatura brasileira.

A epígrafe de Steinbeck não vem de ornamentação. O pêndulo do relógio retoma o drama de As vinhas da Ira. A implantação do capitalismo num meio agrário onde a lentidão do tempo dá a imagem de um pêndulo inerte - lá o tempo não passa por muitos séculos, de pai para filho desde priscas eras - ocorreu antes nos Estados Unidos, na Califórnia de Steinbeck. As leis econômicas são inexoráveis. A literatura que se ocupa desses temas – o abandono forçado do campo, a inchação das periferias urbanas etc. – só pode ser uma literatura de protesto. Charles Kiefer não é o Steinbeck do Rio Grande do Sul. Não é, nem pode, nem deve, nem quer ser. Está fazendo seu próprio caminho. Nenhum escritor repete outro; se repete, repete mal. E Charles tem competência suficiente para se estabelecer por conta própria, como, alias; já se estabeleceu. Sua prosa não pode mais ser ignorada. O que quero dizer, a propósito da comparação com As vinhas da Ira, é que a situação da agricultura brasileira, em especial a do Rio Grande do Sul, ficou multo parecida com os eventos que inspiraram Steinbeck na Califórnia.

O que está em questão, portanto, na prosa de protesto desse escritor, não é um ideário de panfleto que advogue coisas como a conservação do solo, mais virtudes, mais amor, etc.(1). Esses ingredientes podem engrossar o caldo de discursos religiosos, ou programas de agrônomos. Não adianta pregar que o homem é irmão do homem quando todo um sistema faz dele, contra seu querer, suas tradições, seu coração – o lobo do outro. A questão não é, pois: devemos conservar o solo? Devemos distribuir a terra? Devemos financiar a produção no Banco do Brasil? Devemos ouvir os agrônomos? Devemos formar uma cooperativa?

A questão, tal como em As vinhas da Ira, é: por que nós não podemos fazer o que nós queremos? O tema principal da novela de Charles Kiefer é o poder, arrebatado das mãos dos pequenos proprietários de lavouras ditas de subsistência, por outros donos, que lhes roubam até mesmo a subsistência.

Na ficção do Steinbeck é freqüente a aparição de homens que não sabem a causa de sua existência, a razão de viverem. São impelidos então, para atividades e concepções que satisfaçam sua necessidades religiosas. No discurso religioso, às vezes, descobrem que são iguais a outros e juntos podem ser fortes e partilhar do poder. A vanguarda da Igreja Católica vem descobrindo e catalisando essas forças e por isso tanto trabalho tem dado ao chamado sistema.

O sexo não é mais tabu, ao menos nos circuitos da literatura e das outras artes. Tabu, mesmo, no Brasil, é a questão fundiária, a questão da terra. Os hedonistas dos anos 70 chocaram as camadas mais conservadoras com histórias obscenas, indecorosas, que tomaram as sexualidades como temas e revelaram o avesso de usos e costumes intoleráveis. Essa obsessão embotou às vezes a visão de outros temas. A obsessão por Aldine Müller não pode evitar que vejamos também Alfredo Müller.

O reaparecimento da questão fundiária na ficção de escritores tão jovens é sintoma de grandes coisas. Chocar a burguesia é mais fácil do que derrubá-la, disse outro dia Hobsbawn, a propósito da chamada liberalização sexual do Ocidente.

Charles Kiefer deu um tratamento de primeira ordem a uma questão que redundou, por exemplo, no drama da Encruzilhada Natalino. O estatuto estático que marca o drama de Alfredo Müller, sua família e seus vizinhos, está limitado somente pela extensão da novela. Tomara que Charles Kiefer retome o tema numa ficção mais alongada. O pêndulo do relógio é uma novela enxuta, seca, demolidora, bonita e, sobretudo, multo bem escrita. Bem escrita no sentido pleno do termo: escreve-se para decifrar o mundo.

Quando enigmas como a morte de Alfredo Müller são bem decifrados em suas causas profundas, como é o caso, é porque o mundo esta sendo esclarecido e o autor escreveu bem. A palavra, agora, está com os outros leitores.

(1) MARKS, Lester. Thematic design in the novels on John Steinbeck. Paris, Mouton. 1971. p. 67.

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