domingo, 18 de outubro de 2009

A Face do Abismo (Almeida Fischer)

A face do abismo, de Charles Kiefer – Editora Mercado Aberto, 156p. Jornal O Estado de São Paulo, Caderno Cultura, 25 de fevereiro de 1989. São Paulo.

Ao terminar a leitura de A Face do Abismo, novo romance de Charles Kiefer, que se desenvolve na cidade de San Martin, prestes a ser inundada pela construção de uma barragem, não pude evitar que me viesse à lembrança a expectativa de outra inundação, enfocada em Depois do último trem, do também gaúcho Josué Guimarães. Não que as histórias narradas nos dois romances tenham alguma coisa em comum além da construção da barragem, possam assemelhar-se em seus objetivos, em sua técnica de elaboração, em sua linguagem. Nada disso. A cidade de Abarama, ameaçada pela inundação, no romance de Josué Guimarães, não tem situação definida, nem população caracterizada, servindo o episódio apenas para a construção do clima fantástico pretendido pelo Autor. A de A Face do Abismo localiza-se no Alto Uruguai, na divisa com a Argentina, e é habitada por colonos alemães.

Acontece, porém, que o bom leitor faz indagações ao texto, buscando respostas. Assim, a pergunta se me impôs: terá havido alguma cidade gaúcha conhecida, que tenha sido inundada em decorrência da construção de uma barragem? Consultei livros e pessoas e nada encontrei nesse sentido. Tanto Abarama quanto San Martin devem ser cidades ou povoados criados pelos dois escritores do Rio Grande do Sul. Muitas barragens têm sido construídas no Brasil com a inundação de cidades e vilas. Mas não em terras gaúchas.

A inventiva de Charles Kiefer deslocou colonos alemães para a zona do alto Uruguai, fazendo erguer-se, na área que teria sido ocupada pelos índios guaranis, exterminados pelos bugreiros, o espaço ficcional em que se desenvolve seu romance. A verdade é que o talento do escritor tornou a cidade algo tão vivo e verdadeiro que ela passou a existir de fato na literatura brasileira. A realidade comum não interessa à arte literária senão como medida de transfiguração. O que importa é tão-somente a realidade literária.

O fascínio que as aproximações exercem sobre mim é responsável pelas digressões – creio que pertinentes – acima feiras, que poderiam ser estendidas, no que se refere à construção do espaço ficcional, a numerosos romances da melhor qualificação.

Em verdade, San Martin, cuja história, no romance, Alberta Zeller, vereadora do PMD, conta ao neto um dia antes do afogamento de suas casas e fantasmas, é uma pequena cidade de características bem marcadas, com seus tipos humanos mergulhados nos problemas da comunidade, miúdos problemas de resto, ligados à Intendência Municipal, às farras com as raparigas do meretrício, à demarcação de terras e outros desse tipo. No bar do Nicanor, principal ponto de reunião, os homens bebericam relembrando caçadas, revoluções, heroísmos e outras amenidades. Alguns, já sob os efeitos do álcool, vêem-se de repente diante de sua própria consciência, das suas carências, de sua solidão e repetem confidências, as mesmas de sempre, revelando sonhos e perplexidades existenciais. A notícia da construção da barragem altera fundamentalmente a rotina dessas criaturas, obrigando-as a encarar a escura face do amanhã. Resta dizer, talvez mais explicitamente, que A Face do Abismo é um romance da melhor qualificação, que se lê com interesse, escrito em muito boa linguagem literária e com técnica bastante moderna.

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