sábado, 27 de novembro de 2010

Entrevista a Editora Record, 2003

Entrevista - Quem faz gemer a terra & Logo tu repousarás também


Bah, mas como tu não conheces Charles Kiefer?! É fácil imaginar o espanto de um gaúcho diante de alguém que não saiba quem é o escritor gaúcho. Mas a verdade é que, consagrado no Sul, onde já vendeu mais de 300 mil livros, e vencedor de três prêmios Jabuti, Kiefer ainda permanece um desconhecido para o Brasil acima do Trópico de Capricórnio. Agora, 28 anos depois de sua estréia literária, esse admirador de Machado de Assis e Jorge Luís Borges vive a expectativa de ser o próximo nome das letras gaúchas a virar uma preferência nacional. O seu novo livro de contos, Logo tu repousarás também, e a reedição de Quem faz gemer a terra, romance de 1991, são os primeiros que chegam às livrarias sob o selo da Record, através da qual ele espera ver sua obra cruzar o país.

Há cerca de dois anos e meio, numa entrevista dada em Paris, você se queixava de que, apesar de já então ter vendido cerca de 300 mil exemplares de seus livros e de ter conquistado três prêmios Jabuti, o seu nome ainda não era conhecido no Rio e em São Paulo. Desde então alguma coisa mudou?

Não, mas eu espero que a partir de agora, com a minha entrada para a Editora Record, esta situação mude. Nos anos 1980, quando a editora em que eu publicava aqui no Sul tinha distribuição no eixo Rio-São Paulo, eu vendia bem e era razoavelmente conhecido. Cheguei a publicar pelo Círculo do Livro, em edição para associados, o romance Valsa para Bruno Stein. Livro sem boa distribuição é livro morto, você sabe. O que me entusiasma no trabalho da Record é o profissionalismo, a dinâmica, a competência. Eu farei a minha parte, escrevendo novas obras, viajando, palestrando, pois sei o quanto esse produto chamado livro, em países periféricos como o nosso, tem dificuldades de venda. Acabei de lançar, com meus alunos de oficina, uma “Corrente de Solidariedade ao Livro”. Propus que eles sempre dêem livros de presente. É útil, refinado e saudável.

Na mesma entrevista, tanto você como o seu conterrâneo Vitor Ramil defenderam, referindo-se à nova literatura gaúcha, a existência de "uma estética do frio", "uma visão mais esbranquiçada da realidade". Quais seriam as características dessa estética, como ela se reflete na sua obra?

Estatisticamente, o Sul é uma das regiões brasileiroa com os melhores perfis de consumo per capita de livros. Mas eu não credito esse bom consumo de livros ao frio, e sim a outros fatores. À ação do Estado (desde 1835-45, período da República do Piratini), através do Instituto Estadual do Livro; ao meltin pot de culturas, especialmente alemã, italiana, judaica, árabe, russa, polonesa, sabidamente povos amantes do livro; ao melhor equilíbrio (mas ainda muito deficiente) entre as classes sociais; aos investimentos em educação (também desde a Revolução Farroupilha). O frio, por si só, seria incapaz de nos tornar leitores. Acredito em políticas públicas de educação e cultura. Os bens simbólicos são tão importantes quanto os bens materiais.

No conto Nero, no meio da história sobre rinhas de galos, aparece esta definição: "Contar uma boa história é como preparar um galo. Embora estejam todos ao redor do curro por causa do desfecho, as marchas e contramarchas é que fazem a briga interessante. Uma história também tem unhas e esporões". O modo como você "preparou o galo" em Logo tu repousarás também apresenta novidades em relação a seus livros anteriores?

Sim e não. Acredito, como Jorge Luís Borges, que todo escritor circula sempre ao redor dos mesmos temas, pois são eles que nos procuram, os temas são parte de nossas obsessões inconscientes. Como um tratador de galos, limpei com paciência as minhas gaiolas, lixei as unhas dos meus contos, dei-lhes boas injeções de vitaminas políticas, sociais e espirituais. Sou econômico quando escrevo. Concentrado, até. O leitor, ao ler, dissolverá as minhas essências, amplificará as relações entre os nós e os desenlaces.

A morte ronda várias histórias de Logo tu repousarás também (em contos como Boneco de neve, Morte súbita, Nero, Lídia e o rabino, etc.). O projeto era desde o início escrever um livro dominado pelo tema?

A morte é um tema recorrente em todas as tradições literárias. É a nossa maior angústia. Não haveria como não ser a nossa maior obsessão. Escrever é tentar enganar a morte. A estabilidade do texto e a solidez da página nos dão uma certa ilusão de eternidade.

Outra afinidade partilhada entre vários contos deste volume são protagonistas maduros, velhos, solitários ou em momento de balanço. A passagem do tempo é algo que lhe incomoda hoje, aos 47 anos de idade?

É engraçado, mas o envelhecimento não me chateia. Vivi muito, e bem. E, há pouco mais de três anos, nasceu minha segunda filha, a Sofia. E ela me devolveu a juventude, o ânimo, a esperança. Duas décadas e meia atrás, quem me encheu de alegria foi a Maíra, a primeira filha. O importante é viver cada momento em sua plenitude. Em paz, cercado de livros e música. E agora, com esse renascimento literário, estou me preparando para viver mais 100 anos.

Em 1971, outro gaúcho, Érico Verissimo, "fundou" uma cidade na geografia imaginária de todo leitor brasileiro: Antares. Como ele, você criou e está tornando cada vez mais conhecida Pau D'Arco, cidadezinha-cenário de várias de suas histórias. No novo livro, ela reaparece. Afinal, como é Pau D'Arco? Ao longo de suas duas décadas (?) de existência, como ela foi crescendo e se modificando?

Minha Pau-d’Arco foi inspirada em Yoknapatawpha, de Faulkner. Fui leitor compulsivo de William Faulkner na juventude. Como o mestre norte-americano, eu quis uma cidade que fosse só minha. Pau-d’Arco se desenvolve no mesmo ritmo das cidades da hinterlândia brasileira e sofre os mesmos problemas: êxodo rural, desnível social, violência, perda de identidade. Pau-d´Arco é a minha Pasárgada. Cheguei a criar uma cidade ao lado de Pau-d’Arco, que chamei de San Martin, para que Pau-d´Arco não fosse alagada por uma barragem, no romance A face do abismo. Eu me escondo em Pau-d´Arco. E me encontro em Pau-d´Arco. Mas, aos poucos, ela está desaparecendo da minha obra. Meus personagens partiram da cidade e se espalharam pelo mundo. E eu vou atrás deles...

Ao mesmo tempo em que chega ao mercado seu novo livro, Logo tu repousarás também, a Record manda também para as livrarias uma nova edição de Quem faz gemer a terra, romance que você lançou em 1991. Você se inspirou no episódio real — a morte de um soldado com um golpe de foice dado por um sem-terra, durante um protesto. Há alguns anos, você afirmou que foi naquele momento "que a imprensa transformou o movimento dos sem-terra num movimento de bandidos". Nos últimos 15 anos, o Movimento dos Sem- Terra foi ganhando cada vez mais expressão e força. Visto hoje, Quem faz gemer a terra envelheceu? Você defende uma literatura militante?

Sim, a Record relança agora a sétima edição do Quem faz gemer a terra. Não, o livro não envelheceu. Ao contrário, tornou-se mais atual ainda. Não creio que o livro seja de “literatura militante”, ele é “de literatura”. Os temas sociais sempre estiveram entre as prioridades dos escritores. Pensemos em Tolstói, Dostoievski, Camus, Sartre, Steinbeck; que meu romance seja enquadrado em “literatura de cunho social”. É exatamente isto o que ele é. Ele não propõe salvação nenhuma, apenas descreve a vida dura dos colonos sem-terra. Militante sou eu, que me posiciono, que dou entrevistas, que faço palestras. Gosto dessa ambivalência do livro. Os radicais de esquerda me condenam por ser um livro de direita. Os radicais de direita me condenam por ser um livro de esquerda. Sinal de que o livro incomoda.

Quem faz gemer a terra é um título pouco conhecido fora do Sul — onde inspirou até peça elogiada. Como surgiu a idéia de reeditá-lo? A proposta foi sua?

A peça baseada no livro foi apresentada mais de 70 vezes, inclusive na França e na Polônia. A reedição do livro faz parte do pacote que a Record preparou para 2006: serão 4 livros. Esses dois, e mais dois romances, para setembro: Valsa para Bruno Stein e O escorpião da sexta-feira. Meu projeto é reeditar toda a minha obra pela Record, são uns 30 títulos. Em 2007, vem mais. E assim a cada ano.

No fim dos anos 1990, você abraçou a política formal, assumindo o cargo de coordenador do Livro e Literatura, depois foi Secretário de Cultura de Porto Alegre e Subsecretário de Cultura do estado do Rio Grande do Sul. No novo livro, é muito forte, em alguns contos, a desilusão de personagens com a práxis política, inclusive a da esquerda. Como o momento atual do país está se refletindo na sua prosa?

A política formal, para mim, acabou. Dei a minha contribuição, dei seis anos de minha vida à cidade, ao estado, ajudando a gerir políticas públicas de cultura. Quando nasceu a Sofia, depois de fitar seus imensos olhos azuis, decidi que me dedicaria somente a ela. A atividade política é tão absorvente que me impediria de cuidar da infância da menina. Foi uma opção radical, como tudo o que faço na vida. Não gosto do muro. Ou estou de um lado, ou do outro. Saí no meio do governo Olívio Dutra, antes da chegada de Lula ao poder. O atual momento não me espanta. Quem leu os gregos e os grandes clássicos da filosofia e da literatura não poderia imaginar que os seres humanos pudessem transformar-se em anjos incorruptíveis. Os culpados devem ser punidos, depois de provada a sua culpa. Acho saudável o que está acontecendo. Agora, a população compreenderá que é a vigilância constante e democrática que nos vacinará contra o messianismo e a idolatria. Continuarei defendendo os pobres, os aflitos e os humilhados de minha terra natal, onde cantam as jandaias nas frondes da carnaúba, mas onde os salários são miseráveis, a educação não é para todos, a cultura é luxo burguês e livro é objeto esquivo e raro.

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