domingo, 7 de fevereiro de 2010

Gaúchos (Wilson Martins)

Kiefer, Charles; Faraco Sergio; Laub Michel. Jornal O Globo, 2 de abril de 1999, Rio de Janeiro.

A gauchesca é uma literatura saudosista, escrita por intelectuais da cidade, quando há longo tempo desaparecera a sociedade que a inspirava. Autores, narradores e personagens referem-se a um passado mítico e mitificado, em contraste com o presente desmitificante. Em 1942, Viana Moog identificava nesse regionalismo uma vertente orgânica das letras riograndenses, a outra sendo o universalismo, que a complementa e contesta.

Acompanhando o desenvolvimento da sociedade, a literatura tornou-se urbana nos temas, personagens e intrigas relacionadas com a cidade e, quase sempre, com as grandes cidades, nomeadamente Porto Alegre, nem por isso menos saudosista em outras perspectivas: a criança desaparecida, o "verde paraíso dos amores infantis" e também dos amores mortos. É a marca dos contos de Michel Laub ("Não depois do que aconteceu". Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1998), de Charles Kiefer ("Antologia pessoal". Porto Alegre: Mercado Aberto, 1998) e de Sérgio Faraco ("Contos completos". Porto Alegre: L&PM, 1995), este último vitimado pela desatenção da crítica metropolitana, sendo, embora, uma coletânea de grande qualidade literária e, para o que no momento nos interessa, um excelente "documentário" das duas tendências. Um dos seus contos ("Sesmarias do urutau mugidor") é um painel quase didático dessas transformações. Imobilizado na estrada por uma falha mecânica do automóvel (máquina de muitos "cavalos" vencida onde o cavalo dos pampas jamais falhou), o protagonista pede acolhida no rancho de um velho
gaúcho, "ruína viva" que evoca antes o mundo de Alcides Maya que o de Simões Lopes Neto. É significativo que o autor organize o volume em três partes, indo de gauchesca tradicional às narrativas contemporâneas, nomeadamente as "histórias de Porto Alegre", tema predileto dos escritores gaúchos.

Charles Kiefer acrescenta ao realismo urbano realidades imaginárias de diversos contos, como o primeiro deles ("Photoplasma"), em que até a ortografia é fantasiosa. Ele e Laub são contistas "literários", quero dizer, com a viva consciência da sua condição de escritores, de homens escrevendo livros, não observadores de hipotéticas circunstâncias da vida real. Se o poeta famoso declarava ser "homem para quem o mundo exterior existia", eles são ficcionistas para quem o que existe de fato é a literatura. Nessa linha, escreveram contos semelhantes a partir de uma situação "profissional": o ficcionista em busca de assunto.

No de Charles Kiefer, intitulado "Teoria do conto ou Um escritor, um cavalo magro e velho", uma cena de rua fornece a inspiração de que necessitava: "Depois, assim que se instalou à boléia, Antônio apanhou o
aparelho e bateu nas ancas do animal até ficar extenuado, até que o filho apanhasse as rédeas e o chicote e conduzisse a carroça para longe dos meus olhos, que vislumbraram na cena final o motivo de um conto, diferente do primeiro, talvez um que principiasse assim: Há várias semanas dispunha-me a escrever um conto sobre um homem e um cavalo magro e velho...". É com essas palavras que o conto efetivamente se inicia.

Tudo bem considerado, a teoria do conto (de todos os contos) é a sua prática, situação que se duplica quase literalmente no "Conto do inverno", de Sérgio Faraco, tanto no esquema narrativo quanto na conclusão artesanal: "Boa história", diz o narrador a propósito do que acaba de contar. "Meu winter's tale, disse em voz alta. E logo um pensamento desagradável: talvez tivesse desconfiado, desde o início, de que aquilo era um conto. Nesse caso, era quase certo que estivera a representar. Era espantoso como os escritores, às vezes, podiam ser interesseiros, e no fundo, bem no fundo, tão ou mais cruéis do que um dono de caminhão como o que conhecera naquela madrugada".

Nessa galeria, Michel Laub é o "escritor de gabinete", autor, como os anteriores, de contos breves, simples vinhetas, as proverbiais "fatias de vida" que estavam em moda ao tempo de K. Mansfield (Álvaro Lins
identificou uma "família Mansfied" em nossa literatura). Os tempos são outros, contudo, e onde ela se demorava nos devaneios de adolescente e no sentimentalismo nostálgico, os dias de hoje propõem a temática brutal do homossexualismo sórdido ("Na rua escura", de Sérgio Faraco), ou do ecologismo tanto mais politicamente correto quanto convencional ("A última canafístula", de Charles Kiefer).

Um e outro podem ser considerados realistas, pelo menos em uma parte importante de suas obras, enquanto Michel Laub é contista de subentendidos sutis e elipses refinadas: a protagonista de "Cheiro de cloro"
especializou-se na hidroterapia para atender ao próprio pai, paraplégico em conseqüência de acidente na piscina a que ela, como criança, assistira traumatizada. O que só se esclarece na última linha. É autor mais sugestivo que narrativo ou descritivo. O conto "Morando longe", entre outos, modelo de minimalismo que lhe define e caracteriza o estilo, encontra o desfecho dramático numa única linha: "Entramos. Nádia está esperando, e pára de sorrir quando me vê" - tema retomado por Charles Kiefer no plano realista de "O visitante", autor, aliás, do manual do perfeito contista ("O elo perdido").

Tão realista ou regionalista quanto seja, Sérgio Faraco não rejeita o realismo fantástico ("Um destino para o fundador") ou flagrante da solidão urbana, não o tempo em si mesmo, mas o envelhecimento, o que é diferente, ("A dama do Bar Nevada"). É, em perspectivas invertidas, a história do amor perdido (no singular), isto é, do momento fugaz em que se desfez a oportunidade única do grande amor ("Café Paris"). Ou então, a história pungente de Cíntia (Charles Kiefer), cuja morte foi pronunciada pelo pequeno defeito técnico na gravação da música que cantava: "O leve tremor, que eu percebera no gabinete, havia se transformado numa vibração constante de largo espectro, tão homogênea e tão intensa que nenhuma
filmadora ou máquina fotográfica conseguia fixar-lhe a imagem".

2 comentários:

  1. Azu-lypê.

    Eu queria me chamar azul.

    Eu queria,
    eu sempre quis,

    mas o destino me fez verde
    para curar os velhos

    o tempo me fez doce
    enquanto o vinho
    aquecia invernos

    o amor me fez dois

    e você quem me ver quando eu vou
    o que és

    tempo meu
    fez-me

    maduro
    vento
    bateu

    fez-me chão
    porto

    seguro

    o adubo para colher
    as folhas
    roxas

    de paud'arco.

    SANDRO LUIS RIBEIRO FILHO

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  2. FIQUEI COM MUITA VONTADE DE LER O CONTO CAFÉ PARIS...

    "O leve tremor, que eu percebera no gabinete, havia se transformado numa vibração constante de largo espectro, tão homogênea e tão intensa que nenhuma
    filmadora ou máquina fotográfica conseguia fixar-lhe a imagem".

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